TAMBÉM COM OS INFANTIS –

​Estes dias, lendo um artigo no caderno BBC Culture – “Roald Dahl: the fierce debate over rewriting children’s classics”, por Neil Armstrong –, topei com mais um caso, seguindo a moda dos últimos tempos, de revisão da linguagem de clássicos da literatura para suas novas edições. Desta feita, a coisa atingiu a obra do britânico Roald Dahl (1916-1990), que, para quem não sabe, é autor de clássicos infantis como “Gremlins” (“The Gremlins”, 1943), “A fantástica fábrica de chocolate” (“Charlie and the Chocolate Factory”, 1964), “As bruxas” (“The Witches”, 1983), “Matilda” (“Mathilda”, 1988) e por aí vai. Não preciso dizer que a obra de Dahl foi bater no teatro, no cinema, na TV, com enorme sucesso. Vocês reconhecerão pelos títulos.

O “caso” Dahl tem causado forte debate, como esperado, alguns afirmando tratar-se de mais um episódio de infame censura. Segundo o autor de “Roald Dahl: the fierce debate over rewriting children’s classics”, “Sir Salman Rushdie falou sobre a coisa. O Primeiro-Ministro do Reino Unido, Rishi Sunak, idem. The New York Times publicou um artigo debatendo os prós e os contras. Steven Spielberg deu sua opinião. Até a Rainha pareceu se referir a isso [espero que ainda em vida]. Quando The Telegraph revelou, no início do ano, que centenas de mudanças foram feitas no texto original dos romances infantis de Roald Dahl para as suas últimas edições, a notícia causou grande rebuliço. O jornal descobriu que Charlie and the Chocolate Factory, The Witches, Mathilda e mais de uma dúzia de outros títulos tiveram palavras relacionadas a peso, altura, saúde mental, sexo e cor da pele removidas. Algumas das mudanças pareceram desconcertantes”.

​Caso bem interessante é o de “O BGA: o bom gigante amigo” (“The BFG”, 1982). Segundo o artigo da BBC Culture, “Você ficou branco como um lençol!” virou “Você ficou imóvel como uma estátua!” e o BGA não pode mais usar uma capa “preta”. Já os “Homens-Nuvem”, de “James e o pêssego gigante” (“James and the Giant Peach”, 1961), viraram “Pessoas-Nuvem”. “Tia Esponja, a gorda, tropeçou em uma caixa”, nesse mesmo romance, passou a ser “Tia Esponja tropeçou em uma caixa”. Na verdade, a palavra “gordo” foi expurgada de todos os livros. O pior: até trechos não escritos por Dahl foram inseridos nos romances. Em “As bruxas”, uma referência ao fato de que as bruxas são carecas e usam perucas foi acompanhada pela seguinte observação: “Existem muitas outras razões pelas quais as mulheres podem usar perucas e certamente não há nada de errado com isso”.

​O grande Salman Rushdie, já citado acima, descreveu as mudanças como “absurda censura”. Já um porta-voz do Primeiro-Ministro do Reino Unido disse: “É importante que as obras de literatura, obras de ficção, sejam preservadas e não retocadas”. Rushdie tem dado a vida, literalmente, pela liberdade de expressão na literatura. Portanto, tem “lugar de fala” no tema, como gostam de dizer os politicamente queridinhos de hoje.

Essas coisas estão se sucedendo, essas “harmonizações”, para usar de outra palavra da moda. Outro dia foi com Bond, James Bond. O mesmo se deu com as investigações de Hercule Poirot e Miss Marple, os detetives da minha amiga Agatha Christie. Trata-se de um tema polêmico, é verdade. Já dei minha opinião em outras oportunidades. E o meu elogio aqui a Salman Rushdie dá bem a entender o que penso.

No mais, embora essa “harmonização” da linguagem de clássicos da literatura seja moda agora, fui alertado, pelo artigo da BBC Culture, de que “a reescrita de livros não é novidade”. Diz-se que Charles Dickens ficou tão atingido pelas repreensões magoadas de um leitor judeu sobre sua representação do vilão Fagin, que interrompeu já na metade a reimpressão de “Oliver Twist” e removeu muitas das referências a Fagin como “o judeu”. Justo, o próprio autor Dickens pode rescrever (em vida, suponho) o que ele bem entender. Mas fui também alertado de algo deveras grave: um tal Thomas Bowdler – mui sensível e zeloso leitor do século XIX, cujo sobrenome até virou, em inglês, verbo significando “expurgar ou modificar partes de um livro consideradas ofensivas” – chegou a rescrever Shakespeare, para remover, entre outras coisas, quaisquer “insinuações sexuais” nas peças deste. “Ganhamos” um Shakespeare “família”.
Aqui entre nós, rescrever Shakespeare não é apenas absurda censura, é sacrilégio mesmo.

 

 

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London, KCL

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