Breve História da Desvalorização e do Desmonte da Cultura –

Desconsiderar a Produção Cultural como Economia é Apostar na Ignorância

Por mais que queira me manter isento no debate atual em torno do “desmanche cultural”, na maioria dos casos, promovido pela insensibilidade impregnada e pelo ódio persecutório da autoridade governamental, confesso que não consigo me conter. Com o perdão do Rei Roberto, muitas vezes “os detalhes que podem ser pequenos, são coisas muito grandes para esquecer.”

Uma vez consagrada na cultura o que chamo de pauta 4 D (desinformação, desconhecimento, desinteresse e destruição), o vetor resultante de tudo isso impõe reflexões sobre o futuro do setor. O esforço por querer matar não é superior a resiliência de quem se multiplica no tamanho da identidade nacional, que dá vigor à cultura.

Essa resistência é exemplar. Diante de pandemias avassaladoras que atingiram a saúde pública e a ideologia beligerante, muitas atividades culturais se reinventaram para nova realidade e daí conseguiram sobreviver. Não adiantaram as “fakes” dirigidas ao setor, nem mesmo o brutal cerceamento das fontes públicas de custeio. A negação que se semeia em defesa da ideologia aqui posta age numa direção: impedir que produções não se rendam ao retrocesso e à mentira.

Nesse cenário de demonstração de resistência, não há como desconsiderar os valores econômicos. Afinal, por trás de uma enorme cadeia produtiva, há muitos empregos e rendas em jogo. Só que a história recente ignora essa ordem de grandeza. Afinal, o sentimento que se extrai da atual política pública é intencionalmente favorável à desconstrução dos valores culturais, bem como, o desmonte orgânico e da imagem de tudo aquilo que possa fomentar o setor.

A síntese dessa operação é simples de entender. Por razões ideológicas, incapazes de tolerarem a pluralidade de pensamentos que balizam a arte, inexiste qualquer disposição técnica que quantifique e qualifique o que se chama de economia da cultura. Se antes o setor engatinhava na direção de ter seus méritos econômicos considerados, a desfaçatez atual em ignorar e atropelar os empreendedores culturais representa um massacre. Aqui não se respeita a inciativa de empreender com o pragmatismo das politicas públicas, as que considerem a cultura como estratégica. Muito menos se leva em conta a capacidade setorial de gerar fluxos reais e nominais compatíveis para quem representa cerca de 4% do PIB. Ademais, não há registros recentes, que traduzam o quão é importante e diferente operar fundos e incentivos. Nesse sentido, a confusão conceitual só serve para alimentar a guerra ideológica e nela se mostrar falsamente como propulsora de iniciativas moralizantes e protetoras. É o ápice de um falso dilema, para o qual serve um discurso de justiça equitativa, que ignora conceitos e nada representa. Em outras palavras, quando o assunto trata do custeio da cultura por meio de politicas adotadas para fundos e incentivos, o mote é simples de entender. Tentarei explicar o porquê.

O incentivo federal que permite o abatimento do IR é dado por um montante que estabelece a renúncia fiscal, aquele total que se destina aos projetos culturais. Isso não implica ainda em recursos disponíveis, pois a prática do contingenciamento é normal e costuma ser acima da média daquilo que foi disponibilizado. Desse saldo, os produtores buscam aprovar seus projetos. E quando assim conquistam, quase sempre captam bem abaixo do que foi aprovado.

Nesse breve raciocínio, há dois aspectos finais por considerar: a) o brutal distanciamento daquilo que se tem e se consegue para operar, diante do que foi renunciado (ou, o que se deixou de tributar); e, b) passar pelo crivo de uma burocracia escorchante, para aprovar o projeto e, depois, prestar contas.

Assim, daquilo que pode ser R$ 1 bilhão de renúncia (que não equivale a 1% de todos incentivos), o mais razoável é que os produtores operem na média 25%. Por fim, se um projeto for aprovado hoje, o martírio burocrático virou regra. Pior que isso, tem sido o ato de prestar contas, quando todos os motivos de desconfiança são colocados. Isso quando os produtores não são importunados por diligências que buscam complicadores em projetos executados há mais de uma década.

Por essas e outras, tenho a convicção de que os recursos públicos destinados ao setor são bem fiscalizados. Talvez até para servirem de insinuações de usos inapropriados, o que deve dar sentido ao discurso. No entanto, descartadas as inúmeras “fakes” que causaram esse descrédito premeditado, o setor sempre esteve sob o rigor das autoridades. Na realidade, os casos reais de malfeitos estão dentro do que acontece noutros setores, pela conduta de agentes sociais despreparados. Embora que, pelas mesmos vieses ideológicos, agentes de outros setores foram e ainda são poupados do desgaste público.

Essa é a breve história do drama empreendedor da cultura, na qual a ignorância do peso econômico só serve para emoldurar um discurso falacioso, que tenta sufocar e criminalizar o setor.

 

 

 

 

 

Alfredo Bertini – Economista, professor e pesquisador, Ex-Presidente da Fundação Joaquim Nabuco

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