POR QUE NÃO NASCI UM CACHORRO?

O Desafio de Enxergar os Invisíveis é Mera Vontade Política

Antecipo-me diante dos leitores, num justo esclarecimento sobre o titulo da coluna de hoje. Claro que não se trata de um recurso malcriado de comunicação. Na mais pura verdade, minha intenção foi apenas registrar um fato ocorrido, que contextualiza a dramática situação de cidadãos invisíveis. Não só para efeito de politicas públicas. Afinal, a própria sociedade, em gestos e atitudes, muitas vezes revela sua baixa percepção sobre os problemas relevantes.

Sim, se nosso país já possui histórico de ser pouco inclusivo, que sequer tem noção da expressão econômica de milhões de cidadãos excluídos, imagine-se aqui os quase 18 milhões de portadores de necessidades especiais. Esse número é oficial, pois advém da última PNS (Pesquisa Nacional de Saúde), realizada em 2019 pelo IBGE. Esta foi a segunda versão de uma espécie de “inquérito domiciliar” feito em parceria com o Ministério da Saúde (a primeira foi em 2013), num esforço de substituição de dados estatísticos pontuais sobre a saúde, que até então constavam na PNAD (Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios). Assim, no bojo dessa ampliação das informações, a PNS contribuiu para que se contassem com números mais confiáveis sobre esse público, que ainda estava mais invisível.

Perceba ainda o leitor que a última quarta-feira (21/09) foi destacada como “o dia nacional de luta da pessoa com deficiência”. Trata-se de uma referência estabelecida por lei em 2005, mas que nesses 17 anos não gerou grandes motivos para comemorações. Embora a data tenha sido escolhida por conta do início da primavera, a motivação das flores da estação serve de alento pelo sentido da renovação desse compromisso de luta.

Sinto-me agora mais à vontade para tratar dessa invisibilidade por meio de duas visões. Uma primeira relacionada ao efeito socioeconômico, que reforça essa situação de exclusão. Uma segunda se relaciona com algo mais pragmático, decorrente de uma visita que fiz na semana passada, ocasião em que ouvi um depoimento emocionado, razão maior do título deste artigo.

De pronto, o mesmo IBGE que expôs a ordem de grandeza da população portadora de necessidades especiais, tem também revelado outras estatísticas importantes, para a compreensão da invisibilidade. Ao se considerar aquele número dos quase 18 milhões de 2019, à época o IBGE revelou que a taxa de participação efetiva no mercado de trabalho era de 28%. Menos da metade daqueles estimados sem qualquer tipo de deficiência.

Há ainda algo pior: 18% dos deficientes compunham a parcela da população incluída abaixo da linha de pobreza, cuja renda era inferior a R$ 28/dia. Agreguem-se a essas preocupações dois outros números cruéis: a) 7 entre 10 deficientes estão fora do mercado de trabalho; e b) mesmo que tenham uma qualificação diferenciada, muitos dos deficientes se deparam com outros obstáculos que impedem sua inclusão. São, enfim, evidências que comprovam, pelo sentido socioeconômico, uma vida de exclusão que precisa ser encarada com mais responsabilidade pública.

Para consagrar esse contexto tão adverso, confesso o impacto que sofri quando, na semana passada, em visita a um projeto de atendimento amplo às pessoas com necessidades especiais (do Instituto da Senadora Mara Gabrilli de SP em parceria com a UNINASSAU, daqui de PE), encarei de frente uma realidade nua e crua. Assim, ao acompanhar a presidenciável Simone Tebet e a própria Senadora Mara (tetraplégica e candidata a vice na chapa), não só assisti a cenas de um realismo contundente, como ouvi depoimentos bem fortes. Tudo num clima de profunda comoção, mas verdadeiro o suficiente para se cobrar dos políticos e da sociedade uma atenção aos invisíveis. Essa parceria formada pela sociedade civil é a demonstração de uma realidade que precisa contar com o aval das políticas públicas. Enfim, a extensão do problema é um fato relevante, no qual seu desafio de se enxergar agora esses invisíveis é mera vontade política.

Para dar o desfecho, explico agora o titulo que define esta coluna de hoje. A emoção de um depoimento de uma mãe de cadeirante propiciou minha motivação pela escolha. Na dor de quem não oferece ao filho diversão em parques, por falta de brinquedos acessíveis, essa mãe exerceu uma criação à distância desses equipamentos de lazer. Aconteceu da criança ver um parque em miniatura, talvez acessível. O inesperado não passou, sem que o filho fosse omisso diante seu objeto de desejo. Coube-lhe a pergunta fatal: “mãe, parece que naquele parque posso brincar, não é?”. Disse a mãe em resposta: “infelizmente, não pode filho, porque é um parquinho só para cachorros”. Diante da situação, o filho rebateu de modo fulminante: “mãe, por que não nasci cachorro?”. Impactante.

Não se trata do fato de que nossos animais queridos possam ter seu espaço, mas é desalentador saber que é praticamente inexistente a oferta de equipamentos de diversão para nossas crianças especiais. Taí um importante adendo para que futuras políticas públicas contemplem os invisíveis na sua plenitude.

Como dizia o velho chanceler alemão Bismark, “a política é a doutrina do possível”. Por isso, creio que muitos dos desafios futuros não passam de vontade politica para fazer acontecê-los. Certamente, não serão as motocicletas, as armas e os palanques sozinhos, que revelarão aos candidatos a realidade nacional.

 

 

 

 

Alfredo Bertini – Economista, professor e pesquisador, Ex-Presidente da Fundação Joaquim Nabuco

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