A Gradual Conquista de uma “Ginocracia” Emergente –
A Evolução Socioeconômica do Poder Feminino numa Sociedade Patriarcal
Em pleno século XXI, entre vergonhas nacionais como a retomada da fome e a dívida estrutural com nossa ascendência negra, também se revela incompreensível o baixo prestígio dado por agentes públicos e privados, à força socioeconômica da mulher. Claro que muitos dirão a respeito de uma evolução gradual e meio silenciosa de algum poder já exercido por elas. Até tolero tal tese. Mas, a lentidão dessas mudanças ainda exprime um papel secundário que, simplesmente, não me cabe aceitá-la. E pior: quando essa mulher é preta, nordestina e assume outro gênero, a situação expressa uma realidade tão vergonhosa quanto condenável.
Mudar a forma de encarar o mundo hoje, por meio de olhares firmes que não desgrudam de um passado indesejado, é um exercício que precisa ser um compromisso nacional. Não apenas pela adoção de políticas públicas favoráveis. É preciso também que a sociedade brasileira tenha em conta outra maneira de agir e se comportar. Passou-se até da hora.
O Brasil prescinde encerrar mais um ciclo de ser incompleto em muitas questões decisivas. Somos contumazes desperdiçadores de oportunidades. Parece mesmo que fazemos questão de assistir ao filme de ser o país do futuro, numa eterna retórica cenografada em tempo passado.
Com tal percepção, insisto em reconhecer que a luta das mulheres para serem agentes econômicas efetivas, tem por aí meio século de história. Isso pelas minhas próprias contas. No bojo da rebeldia da juventude dos anos 60, mulheres que compunham a população economicamente ativa na década anterior, já davam exemplos de resistência.
Eu mesmo sou fruto da consequência de tamanha luta, por um poder econômico que reconhecesse o papel das mulheres da minha infância. Fui criança nos anos 60, mas convivi com esforços femininos que, desde a década anterior, procuravam se impor. Sou, enfim, criatura derivada de mulheres fortes, com muito orgulho. De avó, mãe, tias e primas que, nas suas respectivas ações, impuseram-se no mercado, contra tudo e todos. Como exemplo, cabem duas notas: a compreensão paterna de acatar o que não era convencional e assistir à minha mãe exercer seu poder, na tesouraria da escola. Neste caso, em particular, causava espanto para amigos “patriarcalizados” ver minha mãe sacar o talão de cheques da bolsa e pagar a escola. Muitas vezes, aquilo pareceu agressão.
Foi assim nos anos 60 e meio século depois. A inserção da mulher no mercado de trabalho ainda se revela restrita. Uma vez que o momento atual tem colocado em evidência outras situações de nossas incompletudes, é chegada a hora da virada nas atitudes, tanto na sociedade como nas instituições. Por esses dias, lembrei-me de um velho artigo do amigo Krause, como reação à eleição de Erundina, para a Prefeitura da maior cidade do país. Independente do espectro ideológico e em nome da causa democrática, uma bela reação ao preconceito que rolou, por ser a eleita mulher e nordestina. A defesa krausiana foi além: rendeu-se ao despertar de uma certa “ginocracia” que, timidamente, já se projetava. Bons presságios.
Ainda bem que o atual processo político-eleitoral emite sinais para pensarmos e cobrarmos atitudes. Ineditamente, temos até chapas competitivas com duplas femininas, colocadas como postulante e vice. Longe aqui de algum posicionamento eleitoral, entendo que, com coragem e competência, essas mulheres estão firmes nos intentos políticos. Propõem-se a contribuírem para um modelo socioeconômico revisado e mais efetivo, que realmente valorize a força feminina.
Assim, o que pude ver no ambiente familiar, parece que só agora se enxerga politicamente para a sociedade. Ficamos à mercê das escolhas da sociedade. Que não valha perder o voo de mais uma oportunidade, porque o tempo costuma ser implacável com quem se atrasa. As gerações de Sandra, Patrícia, Iris, Maria Alice e Maria Laura, mulheres da minha vida, certamente agradecem.
* Hoje, ao fazer dois anos de coluna, dedico este texto para todas mulheres lutadoras. Leitoras ou não
Alfredo Bertini – Economista, professor e pesquisador, Ex-Presidente da Fundação Joaquim Nabuco
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