ANTONIO NAHUD untitled

Relançado recentemente pela Editora da UFRN/Global Editora, a primeira edição do complexo “Prelúdio e Fuga do Real”, de Luís da Câmara Cascudo, teve sua estreia há 40 anos, em 1974. Então presidente da Fundação José Augusto, o poeta Diogenes da Cunha Lima foi o responsável pela publicação da obra. Futuro biógrafo do escritor e seu amigo, encantou-se com os diálogos imaginários entre o autor e figuras bíblicas, históricas e mitológicas, tendo grande trabalho para conseguir do mestre Cascudo a autorização para publicar estes textos ficcionais, atípicos na sua trajetória de pesquisa a respeito da cultura popular brasileira. Ao ler os originais em encadernação verde, o professor Diogenes percebeu a mesma qualidade e brilhantismo que notabilizaram Câmara Cascudo como estudioso do folclore, revelando nesta criação verdades espirituais, psicológicas e humanas.

Entretanto, o autor recusou a proposta, deixando claro que jamais publicaria o material, estava fora do contexto de sua obra, inclusive já havia recusado outras iniciativas de publicação. O professor não aceitou o ineditismo, insistiu no projeto e o livro terminou saindo quase à revelia do autor, cumprindo a Fundação José Augusto a nobre missão de difusão cultural no Nordeste, planejada pelo seu então presidente – na sua gestão, outros livros fundamentais foram lançados, entre eles “Poemas”, de José Bezerra Gomes; “Horto”, de Auta de Souza; “Poesias Completas”, de Ferreira Itajubá; e “Roseira Brava”, de Palmyra Wanderley.

Câmara Cascudo conhecia como poucos a essência e a alma do povo brasileiro. Tanto é verdade que dentre as mais de cem obras que deixou, explorou em detalhes a alimentação, o vestuário, a dança, a música, as lendas, a formação da etnia. Recontou histórias reais e inventadas. Nos anos 1920 e 1930 foi um destacado membro do grupo modernista do Nordeste e interlocutor assíduo de Mário de Andrade. Publicou alguns de seus poemas em “Terra Roxa e outras Terras”, uma revista paulistana fundada em 1926. Em 1959, publicou pela José Olympio o romance “Canto de Muro”. Por toda sua longa vida intelectual ativa, foi cronista assíduo e escreveu vários livros de memórias pessoais, textos em que, como em toda memorialística, a história e a literatura se entrelaçam. Ainda que de difícil classificação, é como obra pertencente ao conjunto de seus escritos literários que foi apresentado ao público seu “Prelúdio e Fuga do Real”.

Este livro fornece uma síntese expressiva do pensamento de Cascudo e sua percepção da experiência histórica sob o viés literário. Uma primeira leitura provoca no leitor não poucas perplexidades. Com razão o poeta pernambucano Jomard Muniz de Britto, um dos seus resenhistas, não hesita em afirmar estar essa obra entre os “mais estranhos e complexos livros (…) de sua vasta bibliografia”. O livro reúne uma série de trinta e cinco diálogos imaginários entre o autor e figuras bíblicas tais como Maria Madalena, Caim ou Judas Iscariotes; protagonistas históricos de tempos pretéritos como Aristófanes, Montaigne, Felipe II, Maquiavel, Erasmo, ou Ramsés II; heróis mitológicos como o centauro Bianor, Pan, o rei Midas ou Pentesiléia, ou ainda com personagens saídos da ficção tais como D. Quixote e o Barão de Münchausen. Nela, Câmara Cascudo revela suas aproximações e seus distanciamentos com a personalidade e o pensamento de muitos deles. E, ao estabelecer estas pontes, o autor aponta ao leitor um caminho precioso para conhecer e apreender sua rica visão do mundo. Uma obra peculiar e preciosa. Parabéns ao Instituto Ludovicus, Global Editora e UFRN.

 Antonio Nahud é escritor e jornalista. Autor de “Pequenas Histórias do Delírio Peculiar Humano”.

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