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Violante Pimentel 

 

Dois rapazes cegos caminhavam juntos pelas ruas de uma cidade, cada qual com um cajado precário, recebido de uma alma caridosa.

Pediam “uma esmola pelo amor de Deus, para quem não vê a luz do dia”.

De repente, apareceu um forasteiro embriagado, montado num cavalo, e começou a insultá-los. Chamou os dois de impostores e exploradores da caridade pública.

Apavorados, os dois cegos ficaram paralizados.

O homem, então, provocou os dois rapazes, dizendo-lhes que iria lhes dar uma valiosa moeda de ouro. Fingiu, então, que estava entregando a moeda a um deles, dizendo:

– Está aqui esta moeda de ouro para os dois!

Os cegos responderam ao mesmo tempo:

– “Deus e Nossa Senhora vão lhe dar a recompensa pela caridade que está fazendo! O senhor é muito generoso! – Responderam ao mesmo tempo, cada qual acreditando que o colega houvesse recebido a valorosa esmola.

Muito felizes, os dois cegos combinaram trocar a moeda de ouro, para almoçar e beber vinho, como se fossem ricos. Almoçar, para eles, seria a realização de um sonho, pois só se alimentavam das migalhas que recebiam das pessoas caridosas da cidade.

A fome em que viviam mergulhados já se tornara crônica. Finalmente, com a moeda de ouro, pelo menos naquele dia, os dois saciariam a fome.

Caminharam, então, para o único restaurante da cidade, temerosos de serem confundidos com ladrões, em virtude dos trapos que vestiam.

O dono do restaurante os atalhou na porta, já com uma esmola na mão. Mas eles a recusaram, dizendo que tinham recebido uma moeda muito valiosa, que daria para pagar o almoço e ainda sobraria um bom troco.

Ouvindo isso, o homem mandou que ocupassem uma mesa e foi providenciar a refeição dos dois.

De longe, montado no seu cavalo, o forasteiro acompanhou os dois cegos, até o restaurante. Apeou-se e também ocupou uma mesa para beber e almoçar. Queria “assistir de camarote” o que iria acontecer com os cegos, na hora em que chegasse a conta.

O homem não parava de rir, antegozando o desfecho daquela história.

O dono do restaurante, confiando no dinheiro que os cegos diziam ter recebido de esmola, serviu-lhes a melhor comida, acompanhada do melhor vinho de mesa. Chegou a refletir que, às vezes, um pobre é muito mais honesto do que certos ricos.

Na hora de pagar a despesa, um dos cegos falou para o companheiro:

– Você que está com a moeda de ouro, pode pagar a conta.

O amigo protestou e disse que ele mesmo não tinha recebido qualquer moeda.

Surgiu uma grande discussão entre os dois cegos e o dono do restaurante interveio irritado:

– Se vocês não pagarem essa conta, seus vagabundos, vocês vão ser açoitados e depois encarcerados em um calabouço!

O forasteiro, fingindo não saber o motivo da confusão, perguntou ao dono do restaurante o que estava acontecendo. O homem respondeu:

– Esses vagabundos comeram e beberam à vontade, e agora não tem dinheiro para pagar a conta. Chegaram aqui dizendo que tinham recebido de um homem generoso uma valiosa moeda de ouro, que daria para pagar o que comessem e ainda lhes caberia um bom troco. Agora, na hora de pagar a conta, a tal moeda não existe.

O forasteiro tranquilizou o dono do restaurante:

– Pois, eu autorizo o senhor a acrescentar à minha conta as despesas que os dois cegos aqui fizeram.

Diante das palavras do cliente, o homem largou o braço de um dos rapazes, a quem já estava prestes a açoitar.

Aliviados, e sem entender quem tinha pago as suas despesas, os dois cegos saíram do restaurante, humilhados e desconfiando um do outro.

Nesse ínterim, o sino da Igreja começou a repicar, chamando o povo para a Missa do domingo. O trapaceiro, então, disse ao dono do restaurante que estava na hora da Missa e o convidou a acompanhá-lo. Disse-lhe que o padre iria lhe entregar o troco da ajuda que ele sempre dava à Igreja. Esse dinheiro seria exatamente o valor do pagamento das despesas feitas no restaurante, por ele e pelos dois cegos.

O comerciante acompanhou o forasteiro à Igreja e os dois se sentaram juntos. Antes de começar a Missa, o devedor foi até à sacristia e entregou uma oferta ao padre. Ao mesmo tempo, pediu-lhe que, no final, fizesse uma caridade ao homem que estava sentado ao seu lado. Disse-lhe que, há vários dias, o mesmo vinha sendo vítima de obsessão espiritual, delirando e dizendo heresias.

Mal a Missa começou, o forasteiro se despediu, alegando que tinha um compromisso. Mas pediu que o dono do restaurante aguardasse até o final, pois o vigário iria lhe entregar quinze moedas, sendo cinco da sua despesa e dez da despesa dos dois cegos.

A Missa terminou e o padre solicitou aos fieis que o acompanhassem nas orações, para livrar um pobre homem da obsessão espiritual, que o dominava há vários dias.

Atônito, o dono do restaurante viu o padre se aproximar, com um crucifixo numa mão e um vidro de água benta na outra, iniciando um ritual para tirar “sua obsessão”. O padre lhe encostou o crucifixo na cabeça, e jogou-lhe muita água benta, fazendo repetidos movimentos em cruz, e proferindo orações fortes, para que o espírito do mal saisse do seu corpo.

Ninguém entendia as palavras do dono do restaurante que, aos gritos, repetia que queria, apenas, o dinheiro que o padre iria lhe entregar.

Os protestos do comerciante não surtiram qualquer efeito. Vendo-se perdido, resolveu silenciar. Os fiéis acreditaram, então, que o crucifixo, as orações e a água-benta tiveram o poder de afastar o espírito do mal daquele corpo sofrido.

O padre, satisfeito com o resultado do seu trabalho de “cura de obsessão”, mandou que o dono do restaurante seguisse em paz.

Não havia dinheiro nenhum para lhe ser entregue.

O trapaceiro nunca mais foi visto na cidade.

Violante Pimentel  – Escritora

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