O PASSADO MORA AO LADO –
“Em geral, os acontecimentos da existência infantil não deixam sobre a humanidade, chegada à idade madura, uma impressão bem definida. Tudo é sombra, cinza, débil e irregular recordação, confusão de fracos prazeres e desgostos fantasmagóricos. Comigo isso não aconteceu. Devo ter sentido em minha infância, com a energia de um homem feito, tudo o que encontro hoje gravado na memória em linhas tão vivas, tão profundas e duráveis como os exergos das medalhas cartaginesas” [do conto William Wilson, em Histórias Extraordinárias – Edgar Allan Poe].

Faço esta citação para lembrar que não é de hoje que ouvimos conselhos e recomendações que nos orientam a esquecer o passado, nos desligar dos acontecimentos e experiências pessoais vividas em tempos remotos. Para muitos, a história da nossa vida, à luz da atualidade, não teria significado, às vezes prestando-se apenas para nos envolver em tristezas e lembranças de infortúnios, ou de gozos e alegrias, sem qualquer utilidade aparente. Mas é difícil, e até impossível para mim, livrar-me ou desprezar as emoções de um tempo em que as experiências foram vividas e compartilhadas ao sabor de uma pureza infantil, juvenil, livre da malícia ou das responsabilidades dos adultos. Disciplina, obediência aos pais, obrigação de estudar, e até de trabalhar, foram marcas da formação de uma educação doméstica e urbana suficientes para nos livrar da marginalidade social, previsível destino dos suburbanos pobres ou desassistidos.

Então, fica muito difícil olvidar as zelosas e diligentes mães, cuidadosas com a nossa formação intelectual e pessoal; dos pais, obstinados provedores materiais e morais dos filhos; e das primeiras professoras, amadas pela dedicação e pela imagem de sapiência que infundiam respeito e admiração. Como esquecer de Dona Kalu ou de Lourdinha, mestras das primeiras letras? Ou das professoras do Grupo Escolar João Tibúrcio, Dona Lourdes, Dona Leonor, Dona Antônia? Jamais as esquecerei, assim como nunca esqueço as matinais do Cinema São Luiz, dos domingos em que víamos os filmes de faroeste, ou das aventuras de reis, rainhas e heróis medievais, exibidos junto com os históricos seriados. Como não lembrar das aventuras do nosso Tarzan preferido, Johnny Weissmuller, ex-nadador e detentor de inúmeros recordes olímpicos? Era um dos nossos grandes heróis, popularizados pela massiva influência do cinema norte- americano, presente até hoje entre nós. Não dá para esquecer dos astros das chanchadas, de enredos simples, repletos de atrações musicais, vedetes esculturais, sem os artifícios do silicone ou do botox, e as mocinhas puras que protagonizavam romances, em meio às trapalhadas que precediam o indefectível, esperado e agradável happy end.

Morrerão comigo as lembranças do auditório da Rádio Poti com as atrações maravilhosas que encantavam jovens, adultos e crianças. Jamais esquecerei da figura de Genar Wanderley, elegante animador que dividia o auditório do Domingo Alegre com Iedo Wanderley e Cascudo Rodrigues, [Jorge Ivan], depois influente político de Mossoró. Aos sábados, Luiz Cordeiro comandava os jovens no seu Vesperal dos Brotinhos. Nos domingos à noite, o Passatempos B- Cinco completava o fim de semana em cujas atrações desfilava a constelação dos cantores e cantoras que fizeram a história do rádio. O destaque era sempre para Glorinha Oliveira, o eterno rouxinol, a estrela maior dos nossos palcos e microfones.

“As nossas lembranças são um exercício do presente, e não do passado”, ouvi dizer Carlos Vainer, um professor da USP, em documentário sobre a ditadura militar no Brasil. Um samba de João Nogueira canta: “… a tristeza mora ali, ao lado”. Desventura e felicidade vivem juntas, inseparáveis de nós; é difícil, talvez impossível, esquecê las ou expulsá-las da memória. Elas estarão sempre conosco, protagonistas das nossas recordações, de parede-meia com o presente.

 

 

 

 

 

Alberto da Hora – Escritor, músico, cantor e regente de corais

As opiniões contidas nos artigos/crônicas são de responsabilidade dos colaboradores

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *