O NAPOLEÃO DAS LETRAS –

Honoré de Balzac (1799-1850) foi um gigante. Como anota François Taillandier na biografia “Balzac” (L&PM, 2009), “em trinta anos de trabalho duro, assombrado pelas preocupações com dinheiro”, Balzac “publicou A comédia humana, monumento romanesco sem igual”; foram “quase uma centena de romances, novelas e contos”, que deram “vida a dezenas de personagens que se transformaram em mitos”. Suas obras-primas – “A pele de Onagro” (1931), “Eugènie Grandet” (1833), “O Pai Goriot” (1834), “O Lírio do Vale” (1835), “César Birotteau” (1837), “As Ilusões Perdidas” (1837-1843), “A Mulher de Trinta Anos” (1842), “Modesta Mignon” (1844), “O Coronel Chabert” (1844), “A Prima Bette” (1846), “O Primo Pons” (1847), “Esplendores e Misérias das Cortesãs” (1838-1847) e por aí vai –, compondo a “Comédia”, provam o que dizemos, o biógrafo Tallandier e este que ora vos escreve. Foi o “Napoleão das letras”, nas palavras de Paul Bourget (1852-1935), e isso já diz tudo.

Há muitíssimo para se falar de Balzac. Mas não sou um Paulo Rónai (1907-1992). E vou me ater a comentários sobre o direito na vida e na obra do autor de “A comédia humana”.

De fato, desde 1816, Balzac viveu às voltas com o direito. Estudou essa ciência dentro e fora da Sorbonne. Embora aluno “desinteressado”, obteve o então baccalauréat (1819). Também militou em escritório de advocacia e em tabelionato à época, antes de se dedicar à literatura, conforme anotado por Claire Bouglé-Le Roux em “La littérature française et le droit: anthologie illustrée” (LexisNexis, 2013). Os pais gostariam que ele seguisse carreira no tabelionato. Ilusões perdidas. Ele não queria viver a labuta enfadonha dos juristas, mesmo ganhando algum dinheiro. Causou desgosto aos genitores e, para nossa felicidade, fez-se escritor.

A experiência prévia no direito não foi perdida para a literatura. Esses anos de formação tiveram grande influência sobre Balzac. Foi durante essa primeira jornada direito adentro que ele começou a entender alguns mistérios da natureza humana. Aliás, em “O notário” (1840), obra de madureza, ele sugere que um jovem profissional do direito, dentre outras coisas, logo vê as rodas e as voltas de cada fortuna, a disputa de herdeiros sobre os despojos de corpos ainda não frios e almas sempre às voltas com o Código Penal. Alguém tem dúvida disso?

Balzac foi um homem da era do Código. Falo do “Code Napoléon” ou “Code civil des Français”, de 1804, um monumento em si mesmo. E o ensinamento do direito, à sua época, focava na exegese da famosa lei civil (vide a Escola da Exegese). Na verdade, embora ele tenha certa vez se referido ao “infame Código Civil de Buonaparte”, Balzac até desenvolveu uma fixação pelos códigos e suas estruturas, daí os seus “Code gourmand”, “Code de la toilette”, “Code conjugal”, “Code de gens honnêtes” etc., ressalta Claire Bouglé-Le Roux.

Para nós, curioso é o “Código dos homens honestos ou A arte de não se deixar enganar pelos larápios”, que possuo em edição da Nova Fronteira, de 2005. Não é um código à maneira como conhecemos, mas, sim, “um livro de autoajuda avant la lettre. Funciona como uma espécie de introdução temática ou nota de pé de página antecipada (se pudéssemos inverter a cronologia do autor) ao que viria depois, ou seja, aos grandes romances como Eugénie Grandet (seu primeiro sucesso, de 1833), O pai Goriot (talvez a melhor introdução à Comédia humana), Ilusões Perdidas e Esplendores e misérias das cortesãs, além dos demais títulos que viriam a compor este imenso painel de romances do século XIX que é A comédia humana”.

Já em “Imaginar la ley: El derecho en la literatura” (Organização de Antoine Garapon e Denis Salas, Editorial Jusbaires, 2015), Gérard Gengembre, no artigo “Balzac, o cómo poner el derecho en ficción”, diz: “A comédia se apoia constantemente nos artigos do Código”. E Napoleão é um tema capital na obra de Balzac: “Napoleão se impõe como o instigador principal dessa sociedade imaginária de dois mil e quinhentos personagens, que imita e interpreta a sociedade real forjada pela Revolução e pelo Império”.
Mas não pensem que o “Napoleão das letras” era um exegeta radical, no sentido de achar que todo o direito estaria no Código. Como diz Claire Bouglé-Le Roux, “o princípio da existência de um direito superior está no coração da introdução [L’avant-propos] da Comédia Humana”. De vero, nas palavras do amigo Théophile Gautier (1811-1872), “Balzac descobriu poemas e dramas no Código”. Quer mais?

 

 

 

 

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

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