O INTELECTUAL CONTERRÂNEO –

Houve uma época em que ser chamado de intelectual era nada mais nada menos do que ser reconhecido como uma pessoa de vastos conhecimentos e cultura, que tinha inclinação pelas coisas do espírito e da inteligência, que fazia uso da racionalidade e da razão. Suas opiniões eram levadas em conta e suas palavras eram atenciosamente ouvidas. Eram pessoas respeitadas e referenciadas. Depois, com a predominância dos conceitos relacionados com as formas em detrimento do conteúdo, do saber comum em contraposição aos saberes estruturados, dos imperativos culturais (do funcionalismo social) sobrepujando a interposição da consciência cultural, no meio acadêmico, o intelectual passou a ser apenas o estudioso de áreas específicas.

Por outro lado, a perda da qualidade e mesmo a banalização do ensino praticado em certos meios universitários, resultaram que, na sociedade, a palavra intelectual passasse a ter quase que um sentido caricato, quando não pejorativo mesmo. Hoje em dia é comum alguns intelectuais se recusarem a serem tratados como tal, com receio de serem tomados como figuras exóticas, bizarras. Uma das causas da ferrenha resistência feita pela Intelligentsia da chamada esquerda brasileira ao governo de Fernando Henrique Cardoso foi, sem sombra de dúvida, a sua origem e produção intelectual, a sua postura scholar, de homem culto, estudioso, de formação humanística.

Eu tenho um amigo que é professor do Centro para Estudos Pragmáticos da PUC, de São Paulo, e professor visitante da Stanford University, de San Diego, na Califórnia. Trata-se do doutor João Mattar, bacharel em filosofia e letras, pós-graduado em administração, doutor em literatura e PhD em filosofia e administração. Sua produção é realmente algo de fazer inveja a qualquer escritor ou profissional do ensino. É autor, entre outras, de uma importante obra intitulada Filosofia e Administração e tradutor de vários livros de filosofia. Estruturou e foi coordenador de cursos de pós-graduação em instituições universitárias paulistas. É realmente um intelectual, mas, no Brasil, foge dessa designação como o diabo foge da cruz. Sua explicação: “não quero ser manequim de vitrine”. Para ele só tem algo pior do que ser chamado de “intelectual”: é ser chamado de “intelectual conterrâneo”, um ser e uma figura ímpar, de pouca produção literária ou esta é de qualidade duvidosa; de trabalhos científicos sem estrutura e comprovação e que não resistiriam a qualquer exame epistemológico. Ainda segundo Mattar, o “intelectual conterrâneo” é uma figura paradigmática do Conselheiro Acácio, o popular personagem de Eça de Queirós, que é a obviedade e o lugar-comum em pessoa, ridiculamente sentencioso, extremamente convencional, de maneiras graves e aparatosas e com conversa vazia e sem sentido.

Plagiando uma frase de Woden Madruga, “como diria um certo intelectual conterrâneo, não desconcordo, mas vou além”: o intelectual ou é intelectual ou não é, portanto não comporta adjetivos. As pessoas que veem o mundo ou a cultura somente pelo prisma do seu lugar não possuem uma visão ampla do saber, pois estão imobilizadas pela raiz. Isso não quer dizer que os regionalistas não sejam intelectuais. O escritor brasileiro mais editado no exterior, Jorge Amado, é universalista porque sua produção tem as cores, o sabor e o cheiro do nordeste brasileiro. O homem emblema da cultura potiguar, Câmara Cascudo, era respeitado internacionalmente por ter a capacidade de ver e analisar o mundo, os países, as camadas sociais, o comportamento de grupos e de pessoas pela visão universalista e regional que ele tinha. O mesmo se pode dizer de Vingt-um Rosado.

A pose dessa espécie se torna risível quando beira o primarismo, quando esses “luminares” se tornam especialistas, geralmente em coisas sem a mínima importância. Por exemplo: Filipe Camarão usava calção de chita ou de veludo, o Marco Colonial de Touros deveria se chamar Marco de São Miguel do Gostoso, e daí por diante. Há coisas piores. Criam até narrativas desprovidas de qualquer comprovação. Isso para não falar nos poetastros que se infiltram por aqui e por aí. Em síntese: não há intelectuais conterrâneos. O que há são intelectuais reais e falsos intelectuais.

*Publicado originalmente em Tribuna do Norte. Natal, 28 jan. 2022

 

 

 

 

Tomislav R. Femenick – Jornalista e historiador do IHGRN

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