NO SAARA, COM OS TUAREGUES –

Durante os anos 1980/1990, incentivado por Chico de Oliveira e Octávio Ianni, e também pelo historiador da USP Fernando Novais, meus orientadores do curso de Mestrado em Economia (com extensão em sociologia e história) da PUC de São Paulo, lancei-me em uma empreitada quase que impossível: pesquisar in loco os países e os povos que participaram do tráfico de escravos africanos, como agentes ativos ou vítimas. A pesquisa sobre os traficantes foi relativamente fácil. Os documentos estavam disponíveis em locais conhecidos, como a Torre do Tombo, em Lisboa, e nos arquivos nacionais de países europeus. Difícil mesmo era pesquisar na África, onde os documentos eram poucos e espalhados em diversos lugares. Então eu tive que percorrer os caminhos possíveis, para ver de perto.

O tráfico atlântico eu pesquisei em Angola, Benin, Nigéria, onde a documentação era, às vezes pouca e dispersa e, outras vezes, abundante, porém desorganizada. Para isso contei com a colaboração do meu amigo Jonatann Murtanlana, professor de uma Universidade de Lagos, que já tinha morado no Rio de Janeiro e que falava 16 línguas e dialetos. Como estava de férias, ele se dispôs a, juntos, andarmos os caminhos da escravidão.

Interessavam-me as trilhas saarianas, aquelas que conduziam os escravos através do Deserto do Saara, até o norte da África, de onde eram levados para a Europa e para os países árabes, antes mesmo da colonização da América. Partimos do Lago Chade, que é ponto de encontro das fronteiras de quatro países (Chade, Camarão, Nigéria e Níger), para fazer a travessia de um mundão de areias estéreis e escaldantes.

Entretanto, não foi uma missão desordenada. Às margens do lago estava acampado um grupo de tuaregues, povo berbere e seminômade que habita na Argélia, Líbia, Mali, Níger e Burkina Faso, Camarões e Nigéria. Por cima das roupas, eles usam uma espécie de túnica longa de cor azul índigo, para proteger o corpo do sol, do frio noturno e das rajadas de areia. Jonatann conseguiu que nós fôssemos aceitos na caravana e, ainda, dois camelos para nos transportar e duas túnicas. O problema foi ajustar as capas aos nossos tamanhos. Nada que duas agulhas de palombar não resolvessem.

Depois de tomarmos algumas canecas de chá de menta bem quentes, saímos de madrugada, quando a temperatura ainda era amena. O problema, que poderia ter sido o maior, eu já tinha resolvido no dia anterior: aprender a montar e a conduzir o “meu” camelo, na verdade um dromedário. Daí para a frente foi só criar um clima de confiança com o animal. A caravana tinha umas quarentas pessoas. Algumas vezes íamos montados, outras íamos a pé, para estirar as pernas, quando elas ficavam “adormecidas”.  Com o passar das horas, a temperatura começou a subir e, por volta das oito horas, já beirava os 36 graus (depois ficou em 48), com a umidade relativa do ar alcançando somente 15%.

Voltamos a tomar chá de menta, a nos cobrir totalmente com as túnicas azul e proteger as cabeças com turbantes. A situação melhorou. Explicaram-me que o chá quente eleva a temperatura interna do corpo, de modo a se aproximar do clima externo, evitando o choque de temperaturas. Fazíamos paradas frequentes. Umas simplesmente para descanso, outras quando cruzávamos com alguma caravana, para que os tuaregues realizassem trocas de produtos – eles se tornaram bons comerciantes. Trocavam produtos da África negra, por outros do Norte da África.

À noite eram armadas tendas. Umas grandes, que alojavam os dirigentes e as mulheres – haviam seis – e outras pequenas, destinadas a grupos menores. Em contraste com o calor do dia, durante a noite o frio era de rachar; abaixo de zero grau. Passamos por três oásis. Lugares que tinham pequenos lagos e uma vegetação que destoava da paisagem árida do deserto. No primeiro deles, eu quis me refrescar, tomando um bom banho. Não me deixaram; aquela água era para matar a sede das pessoas e dos animais. No máximo, pude lavar o rosto e as mãos. Reabastecidos de água, retomamos a caminhada, enfadonha, chata, repetitiva. Nada de novo acontecia. E a comida e a água eram poucas.

Quase um mês depois chagamos em Al Wigh, uma pequena cidade da Líbia, então governada por Muamar Kadafi, onde tomaram nossas maquinas fotográficas, os filmes, os óculos escuros e o dinheiro. Mais quinze dias, cheguei em casa, em São Paulo. Oito quilos mais magro.

*Publicado originalmente em Tribuna do Norte. Natal, 15 dez. 2021

 

 

 

 

 

 

Tomislav R. Femenick – Mestre em Economia, com extensão em História e Sociologia

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