FOGUEIRA DA VAIDADE –
Depois de uma noite dividida entre temor e angústia, palavras que, parece, já nasceram emparelhadas, o barulho ensurdecedor das águas de março caindo nos telhados, que incomoda muito os que moram em Natal acostumados a mudos e diuturnos raios de sol, me acordou antes do despertador. Os pardais longe ainda estavam da sua invasão diária e diligente predação. Foi quando entrei num táxi em direção ao aeroporto. Nele, já em pleno delírio persecutório racionalizado em bases lógicas, qualquer coisa valia.
 
Minha paranóia fluindo em ebulição a viajar na magia da relatividade do progresso e da ordem que não existe no Brasil; o fato de ter que encarar avisos de não fumar com os pés no chão da aeronave, e a cabeça nas nuvens, durante umas quatro horas; pensar na grande vantagem do equilíbrio emocional na sorte ou no azar; e outros detalhes, até um pouco mais elaborados, em suas minudências ajustadas a circunstâncias como a impossibilidade de eu ter nascido alado; pensando na possibilidade de morrer sem estar suficientemente velho, entrei no avião com destino à Amazônia.
 
Meu irmão sentou em uma poltrona mais perto do corredor, eu na do meio e um senhor circunspecto, com ar professoral, mais ou menos da minha idade, os cabelos começando a rarear, já ocupando o assento que dava pra janela. O meu notório medo de voar em qualquer coisa não dava margem para qualquer papo. O olhar mendigo dele, entretanto, tentava nos sugerir o contrário. Começou a puxar conversa e eu a me fazer de desentendido.
 
Notei que ele estava com o relógio de pulso de cabeça para baixo. Seu relógio está ao contrário, disse meu irmão, o que desencadeou a última coisa que eu gostaria de fazer, ter que trocar ideias. Você é um bom observador. Eu o uso assim porque sempre que eu vou olhar as horas eu não o faço de maneira automática. Ter que me concentrar para lê-las me leva à formação de novas sinapses cerebrais. Só de sacanagem eu disse. O senhor acredita nisso? Foi o suficiente para ele continuar a vomitar o acadêmico e prolixo discurso neurolinguístico.
 
As sinapses, insistiu , são conexões especializadas que permitem transmitir informação entre os neurônios. São, por isso, estruturas dinâmicas que governam e moldam o fluxo de informação do nosso circuito nervoso, um fator suficiente para retardar o envelhecimento cerebral. Sendo assim, a plasticidade sináptica consiste na capacidade de rearranjo por parte das redes neuronais. Ou seja, perante cada experiência nova do indivíduo, as sinapses são reforçadas, permitindo a aquisição de novas respostas ao meio ambiente. Por isso, a plasticidade sináptica constitui um dos mecanismos mais importantes da plasticidade cerebral, permitindo igualmente que uma lesão ao nível da transmissão de informação neuronal seja recuperada através da criação de outras redes neuronais que possam substituir os danos causados pela lesão. Mas, é lógico, isto é um pouco difícil de vocês entenderem.
 
Esaú concordou com um aceno de cabeça, eu, calado estava, calado fiquei. Vocês são comerciantes? Não, somos médicos, estamos indo para um Congresso de Anestesiologia em Manaus. Ah, então vocês sabem quem eu sou (eu sabia, mas fiquei na minha). Esaú disse não, não sei, não. Eu sou o Lair Ribeiro e estou indo dar um curso sobre o assunto em Manaus, também. Prazer, seu Lair, igual ao seu nome eu só conhecia até agora o de um amigo meu, o Lair Solano, lá de Natal. Vocês sempre deveriam tomar atitudes como esta que eu tomo com relação ao meu relógio, sempre. Da lógica Descartiana do meu irmão escapou uma pérola. Se, como o senhor afirma, há uma pequena perda de conectividade neuronal, que tende a ser recuperada desta forma, porque o Sr. não lê esse jornal aí, de cabeça pra baixo. Seria ótimo, não? Quando o senhor chegar ao seu destino o seu cérebro estará zero-bala, totalmente reconstruído e reciclado. Papo encerrado, claro, constrangimentos à parte e cada um na sua, ele começou a ler o jornal na posição normal, e eu morto de vergonha com a crueldade do mano, mas o que está feito remediado também está.
 
O que me fez lembrar de um fato mais jocoso, ainda, de um amigo que em situação semelhante fez que não reconheceu o passageiro ao seu lado. Mas como o senhor não me conhece? Não recordo, desculpe, ele pôs seus óculos escuros  e nada; inconformado, colocou em seguida o chapéu texano na cabeça, e para corroborar ainda mais as informações, cantarolou um pouco “Eu não sou cachorro, não …”. Será que você não percebe? Eu sou o Waldick Soriano. Conversa, pensa que eu sou besta? Você não é nunca o Waldick. Ele nunca faria o que você está fazendo. Me deixa em paz e deixa de ser maracatu, cara!
 
Enfim, fazer o que nós achamos que devemos fazer sem almejar um eterno e exagerado reconhecimento, sem exibicionismos, trabalhar sem almejar o estrelato, estudar sem almejar subestimar os outros, implica treino, equilíbrio e autocontrole. O certo, talvez, seria vivermos cada dia da vida famintos de irreverência, poesia, de ideia e de espanto, com fome de uma existência que não venha com bula com instruções sobre o modo de vivê-la. Quem não estiver de acordo, demita-se, se vire e invente o seu próprio jogo.
 
José Delfino – Médico, músico e poeta.
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