EVOCAÇÃO –

“Uma esmolinha, pra minha mãe jejuar no dia d ‘hoje!”

Na Semana Santa da minha infância e juventude, era com essas palavras, que as crianças pobres de Nova-Cruz (RN) esmolavam de porta em porta, na Quinta-Feira Santa e Sexta Feira da Paixão.
Ainda hoje, essa frase ecoa aos meus ouvidos, como um apelo desesperado contra a fome.

Na sala da nossa casa, ficavam dois sacos grandes, um com brote, outro com bacalhau. Eram as esmolas que Dona Lia, minha mãe, distribuía aos pedintes nos dias da Semana Santa. Mas o número de pedintes aumentava mesmo era na Quinta-feira Santa e Sexta-Feira da Paixão.

Nessa época, final da década de 50, e anos 60, bacalhau era produto de baixo custo. Não chegava a Nova-Cruz o bacalhau de 1ª qualidade.

A Semana Santa, principalmente para os católicos, era uma época triste e sombria. O martírio de Nosso Senhor Jesus Cristo era revivido com respeito.

Para começar, não havia aula durante a Semana Santa. Não se ouvia música profana; ninguém chamava “nome feio”, e ninguém brigava. Era um período de reflexão, arrependimento, união e orações.

Na Quarta-Feira de Trevas, que antecede o martírio de Jesus, parecia que o mundo estava de luto, com a perspectiva de que no dia seguinte começaria o seu Calvário. Na Igreja lotada de fiéis, era rezado o “Ofício das Trevas”, no final da tarde,

A crendice popular era tão forte, que grande parte do povo da roça chegava ao ponto de não tomar banho na Quarta-Feira de Trevas, achando que era pecado e temendo ficar entrevado (aleijado). Foi preciso a intervenção de Frei Damião, numa das “Santas Missões” que costumava fazer na cidade, para convencer o povo da roça de que não era pecado tomar banho na Quarta-feira de Trevas. E o Santo Frade Capuchinho sempre terminava seus sermões pela manhã, dizendo:

– Agora, vocês voltem para suas casa, e vão tomar banho!!! Não quero que cheguem aqui na Igreja mais tarde, cheirando mal.!

Na Quinta-Feira Santa, quando se revive a traição de Judas durante a Última Ceia, sentia-se na cidade o clima de tristeza e solidariedade. Revivia-se o começo do martírio de Jesus, que carregou sua Cruz até o Calvário ou Gólgota, colina na qual foi crucificado e que, na época, ficava fora de Jerusalém.

Era comum o furto de galinhas na noite da Sexta-Feira da Paixão, costume oriundo da cultura popular nordestina. O produto do furto garantia o tira-gosto aos cachaceiros de plantão, que bebiam até o amanhecer. Essa “brincadeira” grosseira, detestada pelas donas de casa, quase sempre era praticada por turmas de amigos, que gostavam de farrear.

Para se precaver dessa prática desalmada, à tardinha, as donas de casa mais cuidadosas transferiam as galinhas, do galinheiro para um quarto dentro de casa.

Na Semana Santa, as comadres da minha mãe, que residiam na zona rural, traziam-lhe beijus de goma com coco de presente, feitos em Casa de Farinha. O cheiro e o gosto desses beijus, eu nunca esqueci.

Os católicos não comiam carne durante a Semana Santa. O almoço tinha como “mistura”, bacalhau popular, peixe salgado, ou fritada de sardinha “Coqueiro”. Estou falando de uma época em que o progresso estava muito distante de Nova-Cruz. Não havia energia elétrica e, consequentemente, não havia geladeira.

Na Sexta – Feira da Paixão, Jesus estava morto e a imagem do seu corpo ficava em exposição na Igreja, durante todo o dia. Formava-se uma fila interminável, para que os fiéis o beijassem. Era o chamado dia do “beija”.

Nesse dia triste, eram obrigatórios, de acordo com os preceitos da Igreja Católica, o jejum e a abstinência de carne e bebidas alcoólicas.

As rádios só transmitiam músicas sacras ou clássicas. Não se ouvia o apito do trem, pois ele não trafegava. Não havia entrega de leite dos currais, pois não se tirava leite naquele dia. Não se comercializava nenhuma mercadoria, em respeito ao sofrimento de Jesus Cristo, traído por Judas, e vendido por 30 moedas.

Os clubes sociais, bares ou outros ambientes de entretenimento, também não funcionavam.

A tristeza só desaparecia no Sábado de Aleluia, que revive a expectativa da Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Nesse dia, havia a malhação de Judas, um boneco/homem, de palha ou de pano, em tamanho natural, exposto em praça pública para ser castigado, por ter traído Jesus.

A malhação ou queima de Judas é uma tradição vigente em diversas comunidades católicas e ortodoxas, que foi introduzida na América Latina pelos espanhóis e portugueses.

É também realizada em diversos outros países, sempre da Sexta-Feira da Paixão para o Sábado de Aleluia, à meia noite. Simboliza a morte de Judas Iscariotes, o apóstolo que traiu Jesus.

A liturgia da Páscoa, ou passagem, ocorre da madrugada do Sábado de Aleluia para o Domingo da Ressurreição, a data mais importante do calendário Cristão.

Segundo a Bíblia, Cristo ressuscitou três dias depois de morrer crucificado. Este é o maior motivo e fundamento da Fé Cristã.

Esse é o retrato da Semana Santa da minha infância e juventude, um tempo feliz, quando a vida me sorria e todos estavam vivos.

Olhando pelo retrovisor do tempo, sinto saudade do meu porto seguro, Francisco e Lia, e da família reunida durante a Semana Santa.

Evoco um país de sonhos, trazendo no peito um coração cheio de saudade.

Quero voltar o tempo, mas sei que é impossível. E a saudade faz chover nos meus olhos.

 

 

 

 

Violante Pimentel – Escritora

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