DE PESADELO ETERNO –
Fazia tempo que eu não ia lá. A última vez foi em 1979 quando eles invadiram o Afeganistão e a população não tinha quase nada para comer, consumir ou se informar, a não ser as noticias filtradas dos jornais estatais ou nos livros doutrinários de distribuição grátis empilhados em incontáveis prateleiras ao longo das paredes, até dos aeroportos. Muito pouca coisa mudou, desde então. Já não confiscam mais a “Play boy“, é verdade, o teatro continua exuberante, já não existem mais as quatro filas tradicionais nas lojas, pra escolher, para entregar, para pagar e para receber. A sopa borsch continua com mesmo sabor maravilhoso, a vodka e o arenque, também.
 
Em meio àquelas lojas de nomes incompreensíveis , de repente vejo o nome, Zara , essa praga consumista internacional e as mulheres correndo pra dentro da loja , sinal que devem haver russas chiques por lá e que as coisas não devem estar tão ruças assim , para alguns. Não confiscam mais o seu passaporte, pois isto não teria cabimento num país democrático, em compensação pra sair do navio necessário se fez a cada vez uma declaração por escrito especificando o que se iria fazer com hora de ida e volta, pois burocracia não é coisa nada fácil de acabar, mais difícil até que derrubar de novo o regime, talvez.
 
O ônibus atravessava pontes, canais, e eu imaginava a cidade do Recife, como ela nunca haverá de ser e a guia, num português escorreito arrotando um conhecimento de quem conhecia bem as coisas do Brasil, pois um guia turístico civilizado aprende de tudo pra ser bom em seu ofício. Ouviam-se ecos de Camões, Ari Barroso, Pero Vaz de Caminha e ela tão temerosa vinha e carregada que parecia querer por nos nossos corações o grande medo.
 
Em sua terra se plantando tudo dá. Aqui não há coqueiro que dá côco. Lá vocês não passam fome. Tem mangueiras e cajueiros nas ruas (santa ignorância). Lá existe bolsa-família (até isso o diabo da mulher sabia). Aqui, se você não tem dinheiro você morre de fome e frio no inverno e ninguém liga, papo ficcional com ligeiros tons de verdade. Nós, diferentemente de vocês, somos tristes, Vocês já devem ter percebido como nós somos tristes. Sempre convivemos com o sofrimento. Pedro, o Grande matou muita gente de fome. Sua mulher passou-lhe um chif , deu um golpe e o tirou do poder. Vi, por sinal, uma pintura dela no museu montada num cavalo, parecia um homem, me desculpem a analogia, mas foi a melhor que encontrei.
 
Isabel, a sobrinha, bebia o dia todo no palácio que naquele tempo não tinha bar onde ela pudesse ir, o porre com os amigos ia até de madrugada, dormia até às seis da noite quando começava tudo de novo. Eles com tudo, nós com nada. Ela tinha 15000 vestidos para não nunca repetir um na vida. Depois, veio o comunismo que eu não alcancei, mas meus avós disseram pros meus pais e eles pra mim que Stalin superou todos, matou muito mais que Hitler que foi mais específico. A política dele era eliminar sumariamente os seus opositores e conseguiu fazer isso até morrer no poder. E depois chegou a abertura, caiu o muro e deu no que deu, nesses atuais tempos de privações, vivemos hoje, infelizmente, o culto à personalidade desse cara, o Sr. Putin, que não mata indiscriminadamente ainda, só isola os contrários deixando-os à mingua, sem emprego ou educação, sem ter um pau que dar num gato. Como vocês podem ver somos desafortunados. Falo assim para que espalhem.
 
Vez por outra ela parava o discurso e descrevia ligeiramente os edifícios e as paisagens. Não fazia grande diferença, a beleza da cidade enchia os olhos e falava por si só. Ao final ouvi da outra guia: ela tem a língua grande, vai terminar se dando mal. Enfim, São Petersburgo continua a mesma, tendo de tudo, a sua beleza estonteante entremeada de drogados bêbados e gozadores espalhados nas ruas. Isto aqui sempre foi e será a mesma merda de sempre , O senhor sabia que a sigla CCCP foi uma homenagem musical feita pra nós pelos mexicanos ? Eu confuso, ele arrematou cantando. Cucurucucu Paloma … E desatou a rir. Não sei quem falou, que todo exagero é uma forma de ficção. Mas quem de nós não é ficcionista na vida?
José Delfino – Médico, músico e poeta.
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