DE PAPO TRÔPEGO –
A vida nos dota de certas capacidades que a gente pensa que desconhece. Fantasiar, por exemplo, é a racionalização quase perfeita; uma bela válvula de escape, uma das maneiras de se viver menos burocraticamente. Lugares pra onde ir a gente sempre encontra; bons amigos, também, pois o mundo não é só aqui, me ensinou Isolda. Mas muito mais difícil é escapar à ordem imaginada, urdida pelos outros. Naquele tempo, enquanto derrubávamos os muros da nossa prisão e corríamos para a suposta liberdade, estávamos, na verdade, correndo para o pátio espaçoso de uma prisão ainda maior. A de nós mesmos. Daí, hoje , eu preferir ficar a bater os meus escanteios imaginários da vida, almejando a “folha seca” do Didi, e fazer um gol olímpico; ou tentar enganar o goleiro ao bater penalidades máximas fictícias, exercitando aquele chute sem barreiras bem perto da trave. Ou, melhor ainda, jogar na Mega-Sena.
 
Dávamos uma rolé, eu e Isolda, nos tempos em que o cruzeiro e o dólar andavam pau-a-pau e o crédito se perdia de vista. De dólar em dólar, víamos a paisagem passar: jardins bem cuidados, castanheiras em flor, baguetes adornando axilas, a chuva emoldurando a cidade, o sol ferindo nossos olhos ,as formigas diligentes em azáfama organizada na calçada do hotel, o ritual da missa dominical em latim, o coro das crianças de Notre Dame, o som daquele órgão imenso adornando o feriado na catedral, que ateu não é de ferro. O sorriso desdentado da Mona Lisa, toda tímida naquele quadro, aquele busto sem braços, pois turista também se contenta em olhar essas coisas pra espalhar impunemente pros outros, depois; a minha vontade de também colocar um cadeado de amor naquela ponte e a vergonha de antes ter que dizer pra ela.
 
Uma noite, embevecida, ela descobriu a beleza da cidade ficar mais bela às custas de iluminação indireta (eis o segredo agora revelado); dizia que Mossoró não estava com nada; queria era ficar morando de vez naquele paraíso europeu. Na manhã seguinte, dei a aula prática. De Chateaux Rouge (da rua Aristides Briant, onde estávamos, fomos até Montrouge e de lá até La Chapelle) essa Paris que a maioria dos turistas desconhece: polícia armada até os dentes na saída da estação do metrô, bem antes do perigo do estado islâmico tirar a nossa paz. Avisos sonoros no trem de superfície para os turistas se precaverem das prostitutas e batedores de carteiras, imagine. Ainda bem que correu tudo na mais santa paz; a branca de neve reinou entre Senegaleses, Paquistaneses, Indianos e afins, em sua maioria. Compramos discos do Salif Keita, do Ismael Lo, e do Nusrat Fateh Ali Khan, muitas bugigangas pra distribuir na volta ao terceiro mundo; milho assado suculento provamos e jarras de vinho tinto da casa bebemos a 1,99.
 
Foi legal, mas logo ela desistiu da ideia de fincar raízes na terra de Robespierre por conta dessas condições tão inóspitas de vida. Na volta, o trem superlotado, nas curvas que ele fazia, a inércia me forçava a dar algumas mengadas involuntárias na bunda dela, o que chamou a atenção de duas brasileiras evangélicas sentadas à nossa frente. Olha só que velho tarado, se aproveitando da moça e ela não diz nada, coitada. Isso num época em que ejaculadores públicos pareciam não existir e impunemente não cantavam de galo. De saco cheio de tanta babaquice, o meu olhar que às vezes olha pro nada, e que sob sua ótica pode ser tudo, se fixou sem querer numa delas. O velho tá olhando pra você agora, reze, reze irmã, Jesus, Misericórdia . Ficaram a me encarar atônitas, quando ouviram o sonoro “entendi tudo, meninas” ao descermos em Pont Neuf para admirar os restantes raios de sol sobre o Sena.
A verdade é que a realidade desde que não aplicada em excesso, quase não faz mal a ninguém. Pior são os amigos que fazemos e não sabemos quem são. Quanto a isso, só cometo versos, alguns que só venho entender a lógica bem depois: “Temo tanto a noite escura / Quanto os amigos que desconheço / Mas pra tentar entender-me é preciso / O irracional seguir célere / Num nada a fazer que se prende / Ao que a incompreensão se apega /Até chegar onde não ter onde ir / Mesmo que seja ao limite / Das barras do meu próprio cárcere”. Mas é que eu faço de tudo um pouco, nem sempre bem. Mas só não quero que digam que eu não levo a guia de quem souber me amar, outra coisa que aprendi com Isolda, “my old flame” essa minha paixão, essa ternura tão antiga. Mas, e daí? Se os olhos da Elisabeth Arden, meu bem, o que vocês e a Helena Rubinstein com isso ?
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José Delfino – Médico, músico e poeta.
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