DE BARRA PESADA E ERRO GENÉTICO –

Entrei no centro cirúrgico e por força do meu ofício sempre atuar no ataque, naquela manhã de terça-feira me vi em posição de defesa e torando um aço. Despi-me, calcei os propés, pus o gorro cirúrgico (e a máscara, desnecessária, por puro reflexo), tranquei a inseparável bruaca no armário, cobri-me com um avental ridículo totalmente aberto atrás e fui a pé em busca da cruz do meu calvário sentindo um frio horroroso no traseiro, em dúvida se por conta do estresse ou do ar condicionado que gelava os ossos. Lá já me esperava a junta médica perfeita. Dra. Sandra, a anestesista, meu compadre Armando “Pena Maldita” Negreiros e meu irmão Esaú.

Posto em decúbito dorsal, indefeso, braços abertos e presos ao longo da cruz de ferro, apenas com um tapa sexo ( a imitação de Cristo me ocorreu ) e um puta foco ligado ao alto a devassar toda minha intimidade. Pegaram uma das minhas veias bailarinas e aí começou o barato de Grace. Quinhentos réis de morfina mais uns duzentos réis de dormonid fizeram o meu inferno astral virar o paraíso na terra. Não dormi, mas entrei em total amnésia, tanto é que me intubaram acordado, conversei besteira o que fez a indução anestésica ser logo abreviada e conforme planejado, acordei no CRO sem dor e sem saber ou lembrar de absolutamente nada. Assim vencemos o primeiro tempo.

Tudo começou na sexta feira anterior após o jantar. Fui escovar os dentes de forma pouco habitual, com óculos e sem camisa. Foi quando aquele sexto sentido adquirido em quase 50 anos de prática que me faz suspeitar e dar diagnósticos só no olho e no cheiro, me fez suspeitar do pior. Ao espelho, o bico do meu mamilo direito mirava os meus pés. Palpei a mama, não identifiquei nada, mas fiquei com aquilo na cabeça. Mostrei pra minha mulher, médica, e ela laconicamente disse: procure um especialista na segunda sem falta, meu amor, e se fechou em copas. Mas o olhar das pessoas não mente. Passei o final de semana indócil.

Segunda de manhã cedinho não mudei minha rotina. Fui trabalhar no São Lucas, mais pra bater antes um papinho com a médica mastologista auxiliar da primeira cirurgia sobre o que ela achava do que comigo estava a acontecer. Ela chegou, bela como ela só, cabelinho cortado à francesa, sorriso radiante. Madrugou hoje, Zé? Chica, meu amor, palpa aqui o meu mamilo, Excitado, querido? Não, estressado. Ela fez o que pedi e simplesmente disse: procure um especialista. E você? Não é especialista no assunto? Procure um especialista, repetiu, e virou as costas em direção ao lavado para se preparar para a cirurgia.

Solteirinha da Silva, costumava me abraçar, vez ou outra me dava um beijinho, ria bastante, até sentava no meu colo prum papinho de 30 segundos (esse povo definitivamente não tem medo de velho). Saiu sem dar um pio, foi quando caiu definitivamente a minha ficha. Cumpri pela metade a agenda cirúrgica e fui procurar um radiologista da minha confiança quem após me submeter a alguns exames de imagem, terminou com uma mamografia, e com cara de triste sentenciou: com quase toda a certeza, é um câncer, (que eu tinha quase certeza). Um homem pra duzentas mulheres, e logo eu? Infelizmente, Corra!

Corri pra Ricardo Bittencourt que fez o risco cirúrgico e pra Toinho Fonseca pros exames laboratoriais e duas horas depois estava com quase tudo resolvido. Invadi às 16:00 h o consultório de Maciel Mathias. Oi, diga aí! Ia te telefonar pra este fim de semana colocarmos o papo em dia, eu você e Armando lá no Bar do Cu. Não vai dar, você vai me operar amanhã de manhã. Ficou doido? Tô com um câncer de mama, cara! Deixa de ser maluco, nêgo. Só acreditou quando viu os retratinhos. É um câncer sim. E aí, dancei? Difícil dizer, vai depender do tipo, do estadiamento, essas coisas. Me adiante alguma coisa, pelo amor de Deus! Zé, vou abrir o jogo com você. Todo esse tempo operando esse tipo de coisa, cheguei a duas conclusões. Primeiro, só existem dois tipos de câncer de mama. O bom e o que vem pra foder e mesmo assim as respostas são também diferentes em ambas as situações. A segunda é que daqui a cinquenta anos possivelmente vão rir da nossa terapêutica atual. Daqui pro fim de semana lhe opero quando estiver com todos os exames complementares feitos e checados. Aí estão, cheque agora. Não é assim, porra! Você deve inclusive fazer uma marcação de radioisótopos e isto toma tempo. Use a sua influência. Ele telefonou para um outro anjo da guarda, o Dr. Vilarim, e como combinado, a marcação se deu às 22:00h.

Voltando ao começo, trinta dias após a cirurgia começou o segundo tempo do jogo de azar. Quimioterapia pesada, mal estar generalizado, prostração no leito, quando eu começava a me sentir normal coincidia com a vez da próxima dose. Isso quando os leucócitos não caíam abaixo da linha de segurança, necessitando internação em isolamento. Uma gripe, uma diarréia besta, uma picada de muriçoca, e tudo já era (seria) em questão de dias. Da metade do segundo tempo ao final até que não fui mal, tirando o uso de cataplasmas, unguentos, o escambau, para minimizar o desconforto causado pela queimadura da pele em um mês de radioterapia.

A verdade é que deu sorte e o engraçado é que o exame genético que eu fiz posteriormente para esclarecer melhor as coisas detectou um gen maluco numa das hélices do meu DNA, compatível, também com câncer de mama e ovário. De tudo ficou uma dúvida. Já que a natureza falhou um pouquinho na minha fabricação eu não teria um ovariozinho escondido dentro de mim? Fico pensando, como sofrem as mulheres. Ainda bem que ela, a natureza, não me programou a TPM, nem a necessidade de pagar o pecado original em lágrimas sanguíneas em módicas prestações mensais por grande parte da vida. Pior seria.

 

José Delfino – Médico, músico e poeta.
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