DA SORTE EM ESSÊNCIA –

Cada um sabe de si e onde o seu sapato aperta. Eu pretendia, acho, talvez, vir a ser um violonista clássico. Viver toda a minha vida com aquelas curvas femininas repousando em meus braços encantando o mundo afora a espantar, em vã tentativa, os demônios do meu dia-dia-dia em recitais e concertos; pois neste ramo as coisas funcionam assim: a plateia paga em dinheiro vivo o deleite próprio e você o preço propriamente dito, no que se arrisca. Quer esteja alegre ou triste. Quer faça sol ou chova canivete na sua vida.

O diabo é que papai não via com bons olhos o meu sonho. Fiz o que pude tentando conciliar Música e Medicina na UFRN. Fui vencido. Prevaleceram a vontade dele e o acaso. O diabo foi chegar até lá. Pra entrar na Escola de Música era moleza àquela época. Nem vestibular para isto existia. Passar no de Medicina, eis o que eu achava que era a suprema dificuldade. Ao fim e ao cabo, terminou nem sendo assim.

Existiam três cursos preparatórios para quem almejava dar uma de Esculápio , hipocritamente falando. O de Joel e o de Herculano (pagos) e o da Faculdade de Medicina (gratuito e eliminatório, ao longo de cada mês do ano). Optei pelo último, mas fui excluído no terceiro mês por conta da minha notória dificuldade em não conseguir aprender a contento uma matéria chamada Física. Não conseguia entender (só decorar e muito mal) aquela ruma de leis, regras, teoremas e corolários. Até hoje, quando tento reler “Uma Breve História do Tempo”, do astrofísico Stephen Hawking, do meio pro fim, invariavelmente, se forma uma imensa bolha de ar na minha cabeça. E olhe que ele foi escrito e direcionado pra leigos no assunto.

Estava eu no mato sem cachorro quando conheci Severino Bezerra de Melo. Começamos a estudar juntos e estabelecemos o nosso método por própria conta. Mas nem isto funcionava de modo aceitável, pois sempre aparecia às tardes Laercio Bezerra, meu tipo inesquecível de candidato a Senador muitos anos após. Ciência interrompida, de imediato iniciava-se um papo gostoso e insano até mais ou menos a “Hora do Ângelus” de Padre Eymard na Poti. Logo após começava a novela de rádio “Jerônimo o Herói do Sertão” do roteirista Moisés Weltman, a desfilar as peripécias do herói que filho de Maria Homem nasceu. “Cerro Bravo seu berço natal … Entre tiros e tocaias cresceu, hoje luta pelo bem contra o mal…”, como apregoava a vinheta da série. E o seu parceiro, o Moleque Saci. E os relatórios do vilão “Chumbinho”, pra complicar as coisas e que eu não perdia por nada. Claro que não tinha como dar certo a nossa empreitada.

Foi quando do céu em minhas mãos caiu uma mínima apostila do curso de Herculano com as perguntas (sem respostas) de todos os vestibulares feitos até então em Natal. Logo descobri que as perguntas se repetiam. Fizemos a nossa apostila secreta, decoramos tudo. De quebra, e também por instinto, (como ele sempre dá certo, meu Deus !) estudamos à exaustão o capitulo anterior e o que se seguia a cada pergunta repetida. Até esta aposta funcionou, vez que acertamos outras questões por mérito próprio e sem “vivaldice” alguma. Vou checar até se existe no dicionário o verbete. Mas que fomos vivaldinos, malandros e espertalhões, quanto a isto, podem ter a certeza que fomos. Sem trauma ou arrependimento.

As provas foram elaboradas pela mesma equipe. Funcionou. Passamos com louvor. Eu, em sexto lugar numa turma de sessenta candidatos aprovados, catapultado que fui pela nota bem alta em inglês que eu já dominava bem e fiz a tradução ligeirinho e sem usar o dicionário. Daí a alegria do meu pai e o meu espanto. Daí chegar à terceira idade recheado do que fazer, alimentando e pondo em prática os meus hobbies preferidos, que à meu respeito criam epítetos os amigos, dependendo da maré em que surfo. Não sou nada disso. Ser médico parece ser o único ofício que pratico e quase domino e com o que pago as contas e os meus pequenos luxos de classe média.

Daí dizer que exerço a Medicina como profissão de fé. Quanto ao resto, apenas preparei a esteira pra descansar o envelhecimento. Mas estão certos os que privam da minha intimidade e dizem brincando que eu nasci com o cu pra lua. Como disse o meu avô (a família sempre fala nisso ) quando me banhou ao nascer numa bacia de prata e colocou um imenso anel de brilhante dentro dela, que os céus iriam sempre me proteger. Com algumas exceções de arrepiarem os pelos do corpo inteiro, o augúrio vai funcionando até bem ao longo dos anos. Mais do que isso só na auto biografia, que com certeza, nunca irei escrever. Por nada, não . É que eu acho cafona. Demais.

 

José Delfino – Medico, poeta e músico
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