COMO SE FOSSE UM SERMÃO –
 
Não se trata de tentar persuadí-los a conjecturar como eu. Cada um tem o seu modo próprio de pensar e agir. Mas vamos lá. É só reflexão. Deus não é dado. É um objeto de crença. Intimista, surreal, mas é. De repente, a força que rege toda a fenomenologia cósmica. Daí toda religião e cada redentor a ela vinculado ser também objeto de crença ou não. O postulado básico da Igreja Ortodoxa nos dá conta que Deus está presente na palavra de qualquer um. Dos novos, dos velhos, dos ricos, dos pobres, dos pastores, pregadores, sacerdotes; dos enfermos, dos sãos, dos bêbados, dos mendigos. Tratar a bíblia como a palavra de Deus, entretanto, é um conceito Luterano difícil de ser levado ao pé da letra. Penso nisto quando vejo pregadores na televisão construírem uma retórica falsa; reduzindo o que está escrito na literatura religiosa com objetivos muitas vezes suspeitos, ilícitos e escusos. Falácia (digressão com interesse próprio e específico) pra mim inaceitável. O que está escrito na literatura sagrada como palavra a ser seguida parece não existir no Canon da Igreja Católica. Razão da consequente ruptura entre a Igreja Ortodoxa (que orientalizou-se) e a Apostólica Romana no seu culto à dor e ao sofrimento. Tudo é subjetivo. Para quem acredita ou não. A religião e a não religião. A crença ou a não crença. Dois polos de caráter psicológico, diametralmente opostos que se impõem. Deus é mito para quem crê ou não. A adesão ao mito gera a experiência verdadeira e existencial de cada fiel, ou infiel, como queiram. Religião é mitológica, mas na liturgia, no momento do culto, o mítico vira real e a resposta é emocional. Ocasião em que a base platônica da matriz se combina ao um quê existencialista. Como Platão a estabelecer a distinção entre a realidade imanente e transcendente; uma material e sensível e a outra imaterial e suprassensível; misturada a especulações ontológicas de Heidgger sobre linguagem, temporalidade, vida, morte, e verdade. O que me leva a Alexandre Herculano em sua “Lendas e Narrativas”: “Com Kant o universo é uma dúvida: com Locke é dúvida o nosso espírito: e num desses abismos, vêm precipitar-se todas as ontologias”. Questões revisitadas e jamais resolvidas até hoje. Portanto, ficamos na mesma. Crer é certo. Descrer, também. Em ambas situações o teatro se impõe. Mas não importa, é ficção. Como um nascimento virginal ou uma ressurreição. E se Deus é mito, como existir a palavra de Deus? A igreja evangélica, por exemplo, é numericamente mínima. E cada uma delas é, por assim dizer, uma igreja católica impossível de se assumir como tal. Dissidente que é da autoridade papal, da doutrina e da hierarquia da dita Santa Sé; diga-se de passagem, os pilares onde se assentam os fundamentos de qualquer religião, possível ou imaginável, são e serão sempre os mesmos. Mas afinal, se é crente ou não é. E todo crente ou descrente em princípio seria um analfabeto funcional, na medida da dificuldade de extrapolar o raciocínio fora dos dogmas de fé de cada domínio doutrinário. Um desastre cognitivo de difícil recuperação. A única experiência humana a não passar para a modernidade será a religião. Ela é a um só tempo alimento e arte, mais do que qualquer outra coisa. Por que não aceitá-la como tal ? Como regra de vida ela foi inventada por nós humanos presos ao reconhecimento da finitude e a incerteza do porvir. E emociona de verdade. O mundo da fé entremeado de sabedoria e ignorância levadas a sério. Evito quase sempre escrever sobre essas coisas. O gatilho foi a lembrança de uma frase que faz muito tempo cruzou o meu caminho. E me impactou bastante: “Viram Buda? Se o acharem, matem-no. Ele é inacessível”. Fiquei à época procurando compreender a sacada, o significado dela. Hoje em dia, parece que comecei a entender um pouco toda essa dúvida que permeia a mente das pessoas. E deixa muitos com a cabeça perdida.
José Delfino – Médico, poeta e músico
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