ARMÁRIOS ABERTOS DO PASSADO –

Em razão dos personagens caricatos e estilizados que eu representava em novelas e programas da Rádio Cabugi, uma vez recebi proposta de um produtor da emissora para encarnar o Cristo na peça Auto da Compadecida, que seria encenada por um grupo de Natal. Conversei com a minha mãe sobre o convite, e ela prontamente me demoveu da ideia, advertindo de que isso não era recomendável, porque, no meio teatral, os homens eram todos, na sua expressão eufemística, amulherados. Eram os anos 1960, e já existia, mesmo de forma mais pura e não violenta, o histórico preconceito contra homens efeminados. Mas isso não impedia, pelo menos em Natal, o diário e constante desfile dos mais clássicos e curiosos representantes do gênero, figuras que se tornaram comuns, muitos deles plenamente aceitos e alvos de carinho por parte da vizinhança e até de outros bairros.

Quem conheceu o Alecrim é capaz de lembrar dos trejeitos e peripécias verbais de Velocidade, um baixinho serelepe que andava com os passos curtos e rápidos que motivaram o apelido. Ou do mulato melífluo e delicado que dizia ser ora a encarnação de Carmem Costa, ora de Núbia Lafayette, enquanto tentava cantar os sucessos das duas. Sossegado, porém assumido, o simpático e feioso engraxate Jackson reinava principalmente na Guarita, onde tinha os maiores fregueses.

 Na Ribeira, era comum alguém topar com Duruca, mulato empertigado e desbocado, que gostava de cantar sambas, e C… de Ferro, um desengonçado pé-de-lapa, que fazia “mandados” para as mundanas da Rua 15 de novembro e locais semelhantes. Um outro, C… de Ouro, era um pianista bastante solicitado. Diferentes nos metais, iguais nas preferências. No bairro, também circulava um dono de boate que se oferecia como possuindo a melhor “serventia” sexual de Natal. Havia outro, menos afoito, porém enérgico, que cuidava com zelo especial da sua bem frequentada casa de “eventos”.

O bairro das Rocas era pródigo em sua fauna de elementos curiosos. Presença constante nas ruas, enfeitado de colares e anéis, aparecia Branca de Neve, um negro vendedor de cocadas. Outro era A Garça, que disputava a passarela das ruas com Betóia, Carlota, Lalá e Buchecha. Simpático, alegre e descontraído passava Mucinho, um costureiro magrinho, “amostrado” e sempre feliz. Em uma mesma casa existia um verdadeiro meio-de-campo de irmãos: Lavanca Preta, Didiça e Liró.

Porém, nem só de trejeitos, caras, bocas e rabissacas viviam essas figuras. Na Cidade Alta, por exemplo, era conhecido um magarefe do tipo mal-encarado, que intimidava os seus “pretendidos” com sua temida peixeira. Nas Rocas, um deles, irascível e briguento, era acusado de assassinato e também foi morto, dizem que no mesmo local onde executara sua vítima. Outro, molengo e grandalhão, era ligado à Polícia e usava ameaças para convencer jovens “abordados”. Um celebrado cozinheiro, carnavalesco, sério, bravo e destemido, nunca correu de uma briga.

É uma relação bastante interessante, porque inclui alguns boas-pintas, como o moreno Salu ou Tito, um grande e belo tipo, que costumava fantasiar-se para os desfiles das Escolas de Samba. Gozavam de respeito por serem prestativos e educados, um empregado do Cartório, notório e vibrante torcedor do Vasco da Gama e do ABC, e outro, um elegante funcionário da Companhia Força e Luz, na Ribeira.

Meu amigo Valdécio Costa, remador e comerciante, de excelente memória, e que colaborou na lembrança de muitos dos personagens, concorda que alguns nomes poderiam figurar na escalação de qualquer time de futebol no bairro. Vejam só que seleção: Caconha, Lulu e Borrachinha; Zé Leão, Didi e Cabecinha; Estrela, Zuéca, Beto Fresco, Vovô e Castelo.

O leitor deve ter a sua própria relação.

 

 

 

 

 

 

Alberto da Hora – escritor, cordelista, músico, cantor e regente de corais

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