A RAPOSA E AS UVAS –

A ingestão de bebidas alcoólicas , por prazer , é um hábito milenar. O Velho Testamento é bastante compreensivo quanto a isso na medida em que só cita , mas não faz qualquer juízo de valor dos porres de Noé , por exemplo. “ Noé cultivou a terra e plantou vinhas . Bebeu e embebedou-se …” (Gênesis 9:20). O Novo Testamento não deixa por menos, com algumas ressalvas por razões óbvias. Mas a evidência histórica sugere que o Cristo pareceria ter sido um bebedor dos bons. Uma vez que deixou bem claro entre seus simbolismos, que corria o tal do delicioso líquido fermentado em suas veias. E junto com o pão , como parelha , solidificou a “Eterna Aliança”. Iniciou ele um novo tipo de linguagem metafórica onde predominavam pensamentos e expressões que me pareceriam cheios de preocupações estéticas, para melhor facilitar o entendimento. Foi, aliás , o único ser humano que transformou água em vinho, o supremo sonho dos enófilos , suponho. Era assim outrora . Beber vinho hoje, neste tempo pandêmico , pós-moderno e virtual , virou moda. Um falso símbolo de status social , bom gosto , desembaraço e inteligência. Daí, muito cuidado sobre o que falar ao “degustar” vinhos, viu ?

Para que o cérebro decodifique uma sensação de sabor, diversos sentidos interagem. Do ponto de vista puramente fisiológico, o gosto e o aroma se confundem. O olfato , como componente sensorial resultante da interação da volatilidade da bebida com os nossos receptores olfativos . O estímulo a essa sensação pode ser ortonasal (o odor entra na região olfativa diretamente ao se inalar o ar contido na taça, acima do vinho) ou retronasal (o tal do retro gosto que fica , quando o odor entra na cavidade nasal a partir da cavidade bucal ao se ingerir a bebida).Tais sensações variam de pessoa a pessoa e possuem implicações genéticas. A visão ajuda muito. O tal do ritual “olhos, nariz, boca”. Mas eu desisti disso, há algum tempo , quando li um artigo científico explicitando certos detalhes sobre o assunto.“Cada vez mais, temos de entender o que faz, do ponto de vista molecular, um sabor ser percebido como bom. Ao compreender como essas moléculas se combinam e a forma com que os nossos receptores as interpretam. Somos capazes, por exemplo, de criar qualquer sabor que quisermos”.

Claro , a gente aprende muito lendo os artigos dos enólogos. Mas a linguagem da maioria chega a ser quase proibitiva e o real entendimento inalcançável. Gosto até quando eles emitem impressões um tanto poéticas; que os brancos , devidos a sua frescura , minimizam a quentura do verão; que os frescos, frutados, são mais agradáveis no outono; que o calor da primavera clama pelos rosés. Como se um bebedor de vinho que nunca saiu de Natal pudesse associar a sensação do prazer que o vinho dá , inserido nas alternâncias das quatro estações do tempo. Beba-o sem medo ou trauma , e fique de boca fechada . Conviva com suas próprias limitações. Ou então siga o meu método, quando for forçado a emitir opinião. Uma tergiversação um tanto confusa , mas que funciona , eis a questão. Chega parece dar nos outros a impressão da perfeita erudição e, às vezes, suscita a admiração e o riso por conta de uma babaquice proposital. Num diálogo tipo assim, com a ideia de um complementando a do outro , por mais ininteligível e estapafúrdia que poderia ser. -“Ah! , este aqui é de uma acidez nervosa gritante e pernas estruturadas”. E você – “Mas elas talvez subvertam sua complexidade aromática, que confirma abacaxi com toques lácteos” . Meu Deus ! Quando pressionado comente, em resposta a um parecer sobre um Chardonnay, assim: – “Pois é , este “amarelo-palha” com reflexos esverdeados , cheiro de pimenta vermelha é límpido e brilhante, com lágrimas finas e lentas”. Não vão entender porra nenhuma do que você está a dizer , mas poderá até um “entendido” ao seu lado comentar , “Verdade , mas é um vinho algo contido”. Neste caso, confunda-o com um implacável – “Sim, mas ele não confirma a intensidade do nariz”. Ele que se vire pra inferir se o seu enfoque seria anatômico ou sinestésico. E este aqui , Zedelfino ? “De um vermelho-rubi , puxado a gosto de cereja”. “Correto , meu amigo , mas encoberto com toques de eucalipto e caramelo”. E fulmine o cara . “Você deve ter percebido que na boca a madeira aparece e lágrimas tingem a taça”. Deste nó-górdio ele talvez infira uma impressão ligeiramente fálica. Meno male. Para os lacônicos e tímidos , uma frase pequena e irretorquível. “É, este belo Malbec evoca aroma de frutas silvestres”. Funciona que é uma beleza. Praticando , você vai virar um craque (uma pedra de craque ,sim). Você irá destruir cérebros. Enfim, beber vinho é ótimo. Mas induz mentiras. E muito papo furado.

 

 

 

 

José Delfino – Médico, poeta e músico
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