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DE INTERAÇÕES POLÍTICAS E CULTURAIS –
 
Ouvir bossa nova e jazz seduz a muitos em todo o mundo e tais  interações étnicas em sociedades multirraciais ensejam interligações de caráter político-social que propiciam modificações no perfil das pessoas. O ponto comum que faz associarmos, à primeira vista, como genuinamente nossos o café e o futebol nos faz aproximar do conceito “chiclete com banana” sugerido pelo compositor Gordurinha.
 
A bossa nova e o jazz, não constituem, a rigor, um gênero musical, e sim uma maneira de interpretação . Antes mesmo de ser uma forma de execução musical, os dois estilos são,  ao fim e ao cabo, um estado emocional resultante de elementos díspares na sua origem, mas idênticos na sua essência.  O que cria uma expectativa passível de aprimorar os gêneros de músicas autóctones e visões culturais correlatas.
 
Rotulada como elitista, a bossa nova foi no início, considerada música anti-popular, como também  o jazz, talvez a mais efetiva contribuição norte-americana à arte universal. Seus perfis de criação e desenvolvimento buscam influências  que remetem  aos períodos de colonização de ambos os países. O desencontro dos acentos rítmicos da bossa-nova (aquela impressão de birritmia no “violão gago” de João Gilberto) estaria calcado na estilização da paganização das batidas de pés e mãos na marcação dos batuques dos negros e pontos de candomblé.
 
Correlação semelhante também  observada por estudiosos do “spiritual ” norte-americano é conservada, embora abastardada, no ritmo das bateristas de jazz dos anos 30 e 40 e poderia ser corroborada pelos brancos da classe média na tentativa de imitação dos movimentos dos pés dos passistas ao som das baterias de escolas de samba, durante qualquer ensaio para o desfile de carnaval ( R W Gordon ). De qualquer modo , tudo nos leva inferir que jazz e bossa nova foram  e continuam  sendo, a base do potencial criativo dos intérpretes norte americanos e brasileiros de forma recíproca.
 
Ouçam com cuidado o dueto Diana Krall/João Bosco em “Garota de Ipanema”. Atentem para a  semelhança entre o Quarteto Novo e o Zimbo Trio com os equivalentes norte-americanos dos anos 60 e as coincidências técnicas e interpretativas entre Jim Hall e Hélio Delmiro. São evidências inquestionáveis . A diferença  entre jazz e bossa-nova se espelharia  também em duas realidades geopolíticas distintas. Enquanto que na América do Norte, a influência da cultura africana  se deu mais no aspecto estritamente musical (talvez até por conta de “uma melhor e relativa estabilidade social “) no Brasil a falta de perspectiva econômica extrapolou o lado puramente estético. A incapacidade do governo de absorver as primeiras gerações de profissionais de nível superior, conduziu também ao campo da militância política.
 
É elucidativa a avaliação do musicólogo Brasil Rocha Pinto ao definir o movimento da bossa-nova como um culto no sentido de integrar no universo da música as peculiaridades do país à época. O predomínio da importação pura e simples de música estrangeira; a diversidade de hábitos dos ricos da zona sul  e dos menos abastados da zona norte do Rio de Janeiro; a exigência da clientela turística familiarizada com um som que mais se aproximasse do “cool jazz”; a preferência de algo mais ligado à música norte-americana pelos representantes do “café-society”, forçaram o aparecimento de um som novo por aqui.
 
Contribuíram, também, as frustrações das ambições no campo da música erudita daquele que se tornou o mentor do movimento, Antonio Carlos Jobim. A este respeito, vale a pena ouvir atentamente “Urubu”. E, em outro plano, a competição em outras áreas entre intelectuais que começavam a despontar como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Rui Guerra, Oduvaldo Viana Filho, dentre outros. Tudo em sintonia com a retórica política da época, comandada pelo presidente Juscelino que defendia o desenvolvimento (dependente) para tornar o Brasil “a maior nação do mundo” e que, somada ao “milagre econômico” do período ditatorial, desembocou no estado pré-falimentar dos anos a seguir.
 
Emergiu desse heterogêneo caldeirão o recital do Carnegie Hall, que não suscitou tanta celeuma e sucesso a ele creditado por alguns historiadores, mas serviu como sinalizador do inicio do reconhecimento internacional da MPB; antes, só lembrada por fatos insólitos ou cômicos, como o de Henrique Alves Mesquita, um dos pioneiros da nossa música, que mandado à Europa a expensas de Dom Pedro II foi obrigado a regressar devido a aventuras amorosas que desagradaram o austero Imperador; ou através dos trinados, trejeitos, e bananas e abacaxis que enfeitavam o corpo da soprano Portuguesa Carmem Miranda.
 
Em 1962 foi estabelecido em definitivo o elo jazz-bossa, quando os norte americanos começaram a incorporar mais amiúde no seu repertório, peças do cancioneiro nacional, passando pelo LP de Sinatra e Jobim, ao ponto de em 1977 a peça “S’Wonderful” de Gershwin ser gravada em ritmo de bossa por João Gilberto. Pontual o fato de ter sido do americano Stan Getz/Gilberto o disco de bossa nova (jazz) mais vendido  no mundo até hoje.
 
Enfim , talvez o maior e mais simples testemunho dessas interligações esteja na frase lapidar de José Ramos Tinhorão, fadada a soar como mais uma ironia: “No samba de Carlos Lira  “Influência do Jazz”  está também embutida a influência do estilo norte-americano de tocar, expondo de maneira crua o mimetismo entre a bossa nova e os recursos particulares da música norte-americana”. 

José DelfinoMédico, poeta e músico 

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