JOSÉ DELFINO

SESSÃO DUPLA –

Duas versões de “Violência Gratuita” (Funny Games), um thriller brutal, foram filmadas por Michael Haneke, com dez anos de diferença. Uma, em 1997, na Alemanha. A outra, nos EUA, em 2007. As duas versões, a alemã e a americana, contrastam com obras como Assassinos por Natureza. Parecem se aproximar, de certo modo, às duas versões de “Cabo do Medo”. As cores e os tons usados lembram “Laranja Mecânica” de Stanley Kubrick, com a diferença de que não há, aqui, violência explícita alguma.

Quando exibida em Cannes, a primeira versão chocou a plateia. Alguns críticos abandonaram a sala de projeção. Nos Estados Unidos, o remake, nem tanto. Refilmada, quadro a quadro, de maneira idêntica, foi usada a mesma trilha sonora. Minimalista, por sinal, porque, excetuando-se o início e o fim, um vácuo sonoro perdura em quase todo o filme. Os mesmos diálogos, os mesmos deslocamentos, os mesmos objetos em cena. Até a casa foi construída em idênticas proporções. Em raríssimas exceções se fugiu à regra.

Original e remake, posando como esmeradas obras de arte, podem, também, ser encarados como dois dos mais cinemáticos atos de sadismo já feitos na história do cinema. O roteiro se prende a uma família em férias que recebe, em sua casa de veraneio, a inesperada visita de dois psicopatas. A partir daí, o planejado sonho de fim de semana se torna um pesadelo, pois ficarão sujeitados a inimagináveis provações de ordem física e psicológica. E assim se desenvolve a trama, onde não se vislumbra, desde o início, a perspectiva de um final feliz.

A narrativa começa numa tomada em plongée, numa rodovia, onde as vítimas Ann, Geord e Georgi estão num carro a exercitarem-se num jogo de conhecimento sobre música. A trilha sonora entrelaça fragmentos desde Händel até ao rock anárquico de John Zorn, reproduzidos no cd player do carro. Enquanto Georg e o filho estão colocando o barco no lago, Ann é surpreendida com a chegada de Peter, um dos vilões que, sem se saber como, cruza a porta da frente. Com polidez se identifica e pede emprestados quatro ovos, os quais deixa cair, como se fora acidentalmente. Volta, tergiversa, pede mais quatro e, antes de recebê-los, inutiliza, da mesma forma, o celular de Ann, derrubando-o na pia da cozinha.

Ao mesmo tempo, entra em cena Paul, o outro vilão. Ann, relutante, atende ao pedido de Peter, mas devido aos rodeios e às evasivas verbais de ambos, começa a sentir algo errado, perde a paciência, e pede para se retirarem. Pergunta por que estão usando luvas. Recebe de um deles, agora de maneira objetiva e lacônica a resposta, tenho
eczema. E só. Ato contínuo, Paul descobre num canto os tacos de golfe de Georg e pede emprestado um deles.

Os visitantes revelam as suas cores verdadeiras ao chegar Georg com o filho, que ouve o pedido da esposa para expulsar as inoportunas visitas e, não entendendo bem o porquê, tenta contornar a situação. Após breve contenda, Georg dá um leve tapa na face de Paul e ordena-os que saiam. A resposta chega abrupta em forma de uma violenta pancada, com o taco de golfe, fraturando o joelho direito de Georg. Cinicamente, mais uma vez, forja um educado pedido de desculpas, por estar sendo tão rude. A partir daí, a situação se desintegra rapidamente e os membros da família, amarrados, são forçados a participar de torturas psicológicas, cada vez mais humilhantes. São, a certa altura, alvo de aposta entre eles se estariam vivos até as nove horas do dia seguinte.

Como progredirão os diálogos ou como terminará o filme, seria melhor o leitor saboreá-los, sem informação prévia. Desnecessário até, de vez que a narrativa busca explorar menos a emoção que as reações à tortura em quem as vê. Dizer-se que o cenário é implausível seria irrelevante, na medida em que a trama cursa em nível simbólico. O importante parece não ser a história em si, mas a mensagem nela embutida: uma análise crua sobre a crueldade humana. Sensação que nos remete a outra mais estranha, em que o espectador, como expectador, não só vê, se hipnotiza. E o resultado é um inescapável incômodo que se avoluma a cada instante.

O tema equilibra-se sobre a tênue linha entre a existência real e a representação. A oscilação entre a desconcertante consciência de se tomar parte de um acontecimento e a segurança emocional de se ver o artificialmente criado ou, até mesmo, a realidade descoberta. O problema não é como a violência é exibida, diz Haneke, mas como se tenta incutir no espectador a sua posição em relação a ela. Essa assertiva é levada às últimas consequências, e o terror, a agonia e a angústia que pairam no ar são os paradigmas que amarram o passivo e desamparado medo da audiência.

O tom de paródia é evidente. Os detalhes são elaborados de maneira tácita, sutil, e jogados de forma não diretamente expressa, mas que se deduz. Vez por outra, Peter e Paul se referem como Beavis e Butt Head, personagens do cartoon homônimo de Mike Judge: dois adolescentes que vivem na cidade fictícia de Highland, desprovidos de valores éticos, morais, obnóxios, misóginos, rudes com as pessoas, até consigo próprios.

Eles parecem não perceber o alcance das suas atitudes e reações instintivas, que sempre sobrevivem a tudo, sem nunca sofrerem as consequências, como o Tom Ripley de Patricia Highsmith. Usam amiúde a expressão “vamos fazer um acordo”, clara referência ao “Let’s make a deal”, programa televisivo de Jay Stewart (1963-1977), no qual os competidores deveriam trazer algo para negociar, regra nem sempre seguida, e o prêmio do ganhador poderia ser trocado por um outro, desconhecido.

Com efeito, por duas vezes durante o filme, um dos invasores, em big close-up, mudo, impassível, quase que em tom de mofa, se põe como a perguntar “tão olhando para que, por quê?” No terço final da peça, quando uma das vítimas parece ter tomado controle da situação, Haneke volta atrás, o filme é rebobinado e a cena deletada é refeita de maneira mais cruel, ainda. O que parecia dar ao espectador a impressão de um sentimento de esperança, desaparece. O diretor parece nos pregar uma peça, nos punir por termos sido tão facilmente manipulados.

Em uma das últimas cenas, o fato de se empurrar uma pessoa, completamente indefesa, na água, nunca me causou tanto mal-estar. Fica patente a continuidade do método criminoso, na forma como as vítimas são apresentadas, umas às outras. Um único deslize técnico acontece: na versão alemã, quando Anna e Georg estão no carro, o reflexo do microfone entre as poltronas da frente pode ser visto na janela.

Um estudo sobre a maldade humana? Com certeza. Crítica à violência, como modo de comunicação, ou à nossa insensibilidade, com relação à violência explícita, hoje largamente exposta no cinema e televisão? Talvez. Para mim, o suficiente num filme em que, paradoxalmente, as coisas mais importantes são ditas com sofisticada sobriedade e, às vezes, nem isso, pois são os próprios gestos que falam.

José DelfinoMédico, músico e escritor

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