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DE UM LIVRO DE LEWIS CARROL  E SUA RELEITURA –

 “Alice no País das Maravilhas” e suas várias versões cinematográficas são, a um só tempo tão subjetivas e surreais que, cada leitor ou espectador, deveria atribuir-lhes um sentido próprio, pessoal. Se deixar levar por Alice seria a proposta. E o modo mais fácil, inferi-la  a partir de perceptibilidade  emocional. Pois elas, todas as Alices, à exaustão e em de diferentes modos, não são fiéis ao texto original. Ao todo, inacreditáveis 54 versões.

Cala, à primeira vista, vê-la aumentada de tamanho, num efeito (tosco) especial. Movimentos labiais, numa tela muda. Um curta de Cecil M. Hepworth, produzido na Inglaterra de 1903, hoje disponível na Internet em cópia mutilada. Dos doze minutos originais, quatro foram destruídos pelo tempo, restando apenas oito, e em mau estado de conservação. Como numa vinheta, sem muita coerência narrativa, nele estão expostas as mais conhecidas passagens do livro: o jardim, o gato de Cheshire, o chapeleiro louco, o coelho branco (muito parecido com James Duval, o Frank de “Donnie Darko”), sem levar em conta o único e inusitado visual da personagem principal já modelado, até hoje: uma Alice velha e feia, até,  se comparada às que lhe sucederam.

Na última releitura, lançada no país em 2010, um longa de Tim Burton, o enredo vai no contra-fluxo. Os paradoxos com a obra original se sucedem: ocorre um incêndio na casa de Alice, o que acaba matando seus pais. Ela não morre, mas fica em coma, beirando a morte. Nesse estado, entra mais uma vez no país das maravilhas, mas algo está diferente. As criaturas não são mais belas e mágicas. São macabras, assassinas, melancólicas. A adaptação animada de Hanna-Barbera, a “Alice no país das maravilhas ou o que uma menina legal como você está fazendo num lugar desses” do mesmo modo, não corresponde à idéia Carrolliana. Uma adolescente chamada Alice, com a tarefa de escrever um livro sobra a sua homônima, acaba caindo no monitor de uma televisão, atrás do seu cachorro, e se descobre (imagine onde) envolvida com os mais conhecidos personagens do livro.

A verdade é que já se fez de tudo, mas, para efeito de adaptação cinematográfica, a ideia de Lewis Carrol é complexa. Afinal é, talvez, o maior poema surreal de língua Inglesa. Ele próprio reconhece no prefácio à edição do livro, em 1886: “Como Alice está prestes a ser encenada, e como os versos de “ É a voz da Lagosta” foram considerados demasiados desconexos para fins dramáticos, quatro versos foram acrescentados à primeira estrofe e seis à segunda, enquanto a ostra foi transformada numa pantera”.

No prefácio da edição de 1897, outra pista: “Tendo recebido tantas perguntas sobre qual seria uma possível resposta para a “ Charada do Chapeleiro” (vide p. 89) acho melhor deixar aqui registrado o que me parece ser uma resposta bem apropriada. O corvo, como a escrivaninha, pode produzir algumas notas, embora sejam muito chatas, e nunca pode ser virado de trás para frente ! Mas isto é apenas uma ideia  que me ocorreu mais tarde. A Charada, como foi originalmente inventada, não tinha resposta”. Se referia ele, de maneira específica (bem após Poe) ao emprego da palavra “raven”, (corvo) que, invertida, soa como “never” (nunca). Há de se convir, uma abordagem escrita quase impossível de ser adequada à linguagem visual .

A versão impressa começa com Alice seguindo um coelho branco de olhos cor-de-rosa até a sua toca, quando então ela se encolhe e se afogando numa poça de lágrimas se salva nadando com um camundongo. Conviverá, a partir daí num clima de absoluta normalidade, em um mundo onde figuras antropomórficas absurdas parecem normais: cartas de baralho, peças de xadrez, animais irracionais que falam e, mais ainda, discutem.

O enredo, segundo alguns, uma sátira à sociedade Vitoriana, como numa peça musical, vai num “crescendo” até o “tutti orquestral” que antecede o final, com requinte e esmero: o furto das tortas e o julgamento onde o réu parece ser o valete de copas, mas finda sendo a própria Alice que acorda no momento em que o sonho está se transformando em pesadelo. Atacada por um enxame de cartas de baralho (na realidade, a irmã retirando algumas folhas caídas sobre o seu rosto). Quando, então acorda, retorna do mundo do faz-de-conta e, supõe-se, guardará consigo as lembranças do país visitado em sonho.

A versão animada da Disney também não foge à regra. Dessa feita, uma mistura temática, de “Alice no país das maravilhas” e “Alice no país dos espelhos”. Muitos detalhes escapam, mas me pareceria ser e é a melhor animação feita até hoje. Numa moldura surreal, as desventuras oníricas da anti-heroína lembram as de Gulliver e Dom Quixote, com uma diferença: Alice é uma criança e vive suas aventuras em sonho, e sempre só. A impressão que fica em quem lê o texto original e vê as versões cinematográficas com atenção, pareceria sempre ser a de um ensaio sobre a solidão. Pois permeia em tudo a sugestão do isolamento e da incomunicabilidade. Até mesmo no relacionamento dela com a irmã ,que na vida real só se interessa em ler um livro “sem figuras e sem diálogo”. Na verdade, o tema pareceria ser, de fato, a abordagem do “viver só” do ponto de vista surrealista. Uma inusual sátira no viés do ser e do não ser.

Duas curiosidades, na versão de 1933, é Gary Cooper quem faz o papel do cavaleiro esquisito. Na versão mais nova de Tim Burton, Johnny Depp é o chapeleiro louco, Michael Sheen, o coelho branco e Stephen Fry, o gato de Cheshire. Algumas variações sobre tema e personagem conseguem transpor, de certo modo, a experiência verbal e intelectual do autor, como por exemplo, a sutil “Alice” de Woody Allen, a alegre, mas também desesperada, triste e solitária Alice (“Alice não vive mais aqui” ) de Scorsese , até o descomedido “Dark Moon” de Louis Malle. Neste último, a fábula em sua releitura pós-moderna e, talvez, definitiva. No que parece ser uma guerra de homens contra mulheres, uma adolescente em traje masculino, foge numa estrada num carro em alta velocidade e encontra um bloqueio de homens com uniforme de guerra e máscara contra gás. Ela vê várias mulheres serem assassinadas. Fugindo depois, a pé, vai dar em um lugar singular. E, de novo, tudo se repete: a convivência entre seres humanos bizarros, animais que pensam e raciocinam e, agora, com a figura mitológica do unicórnio. Um estrondoso fiasco de bilheteria.

Visto à época com desdém pela crítica, é um filme de poderoso simbolismo. Um exercício engenhoso na arte da racionalização e quase impossível para o expectador desarmado compreendê-lo. Desses filmes densos em que o enredo não remete ao sentido da lógica, quando o significado estético é a intenção. Peça na qual o diretor consegue imprimir, em imagem e som, uma fascinante alucinação. Um sonho Carrolliano que descreve em metáfora a relação de semelhança subentendida entre o sentido próprio e o figurado, num mundo para nós diferente e familiar. Como o próprio Malle  disse, “como se fosse uma Alice num país das maravilhas  moderno, não no papel, mas na tela de um cinema”.

José DelfinoMédico, músico e escritor

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