SEU INÁCIO, INACIN OU SIMPLESMENTE PAINHO –
Depois do almoço íamos para a cozinha, eu e meu pai, fazer pipoca e café. Nessa época eu devia ter mais ou menos uns oito anos. Sentávamos na cama grande do seu quarto, toda talhada em madeira nobre, com desenhos em flores e folhas, que se enroscavam formando um imenso jardim de madeira envernizada. Arte talhada por mãos de um funcionário de sua serraria, que fez-lhe ao gosto do desenho que, entre imagens e sonhos de sua mente criativa, rabiscara em papeis de cigarro, como queria que fosse a cama de casal, talhada em madeira de lei. Aquela que ocuparia lugar de destaque em seu quarto. Sentávamos na beiradinha da cama, de frente para a televisão, comendo pipoca, tomando café e assistindo o Jornal Hoje. Achava estranho quando ele colocava pipoca dentro da xícara, misturava com café e comia com colher. Ele dizia que dentro da barriga ia ficar tudo misturado mesmo! Estava só a facilitar o trabalho da digestão.
Da casinha da árvore, feita por ele, meu pai; dos acampamentos feitos do lado descampado vizinho à oficina da serraria; dos piqueniques com fogueiras; ocas de índio feitas de varas, iguais aos filmes americanos em forma de cone invertido; da lona que se erguia em alusão ao circo que estivera na cidade dias atrás (que ele me levara para assistir); do tanque de concreto, feito por ele, para regar um minúsculo plantio de cana de açúcar para aos domingos descascar a melhor cana da sua colheita, dando-me para chupar (relembrando sua infância, na fazenda dos seus pais, no interior do Pernambuco), transformava-se em piscina nos fins de semana. Não havia nada que meu pai não fizesse ou incentivasse nas minhas traquinagens sadias de criança. Tudo tinha seu aval.
Meu pai, homem de poucas letras e muita inteligência, mantinha em cima do seu birô, um exemplar do Aurélio, para os casos de consultá-lo, caso alguém chegasse para uma boa prosa, o que era corriqueiro. No bolso da sua calça, modelo social com vários furinhos, provenientes das queimaduras das brasas do cigarro Carlton, sempre tinha um novo livro de bolso de bang bang, faroeste americano. Devorava um a cada dois dias nas horas vagas, ou quando pastorava a filha (eu) em uma de suas aventuras.
Lembro-me bem de dois “carões” que levei dele – nem sei se foram carões de verdade, mas lembro dos seus imensos olhos fitando-me em repreensão as minhas “danadices”. Garota arteira. Uma vez foi ao desmontar uma caneta daquelas bem bacanas, dourada da ponta fina. Caneta chique. Era a caneta do seu orgulho, tinha ganhado de um amigo de muita estima. Com ela assinava os cheques da folha de pagamento dos seus funcionários e demais documentos importantes. O outro “carão” foi no pingo do meio dia, quando eu estava em cima da caixa d’água, olhando uma vaquejada que acontecia pelo outro lado do muro, nos fundos da oficina, depois de uma noite inteira acordada com crise asmática. Dessa vez, senti o frio correr toda extensão da minha espinha dorsal, com medo de uma pisa. Bastaram os grandes olhos fitando-me em descontente desaprovação, para eu correr em disparada para meu quarto e de lá só sair no outro dia.
Hoje, deitada naquela, já não tão imensa, cama de madeira talhada em flores e folhas (A cama, fiz dela minha herança). Lembro-me dele e do seu jeito peculiar de ser. Lembro-me do meu velho, do meu super herói – nem de longe parecido com o Superman. Ele sim, o super herói da vida real. O homem que lutou pelo sustento da família, que ensinou valores, defendeu e protegeu sua prole com unhas e dentes. Homem de poucos amigos. O melhor amigo que alguém poderia ter. Homem honesto, justo e correto; homem autêntico, questionador e destemido; inteligente, comedido e cauteloso (será por isso a sua fama de sovina? Deixa pra lá, isso é só um detalhe).
Homem, pai, filho, avô, marido, irmão, tio, amigo, patrão… Esse é Inacin – como sua mãe gostava de chamá-lo. Painho – como eu o chamo. E assim, há onze anos celebramos o seu sono profundo.
MEU PAI!
2022, 18 anos sem você.
“Disse Jesus: Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá; e todo aquele que vive e crê em mim, nunca morrerá. Crês isto?” (João 11:25-26).
Flávia Arruda – Pedagoga e escritora
