O ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, um dos protagonistas da crise que elevou a temperatura de Brasília à máxima potência nesta última semana, concedeu uma longa entrevista ao jornal Correio Braziliense, a qual vamos procurar sintetizar aqui. Em meio à decisão do presidente do Senado, Renan Calheiros, em desobedecer a liminar do ministro Marco Aurélio Mello, Gilmar Mendes criticou o magistrado, deixando no ar a possibilidade de impeachment do colega de tribunal. “Na verdade fiz blague, dizendo que temos pago um preço muito alto por conta de idiossincrasias, toda hora ao longo dos anos. Mas quando atuamos como se fôssemos seres únicos e onipotentes, causamos problemas institucionais graves.” Gilmar lembrou de outros assuntos que deveriam ser discutidos pelo plenário, mas que acabaram tendo liminares apresentadas antes. Entre eles, estão a partilha dos royalties do petróleo; a criação de novos partidos e desfiliações; o aborto de anencéfalos; e a abertura de comissão na Câmara para analisar impeachment do presidente Temer.

1 – Falando na entrevista sobre a decisão do plenário do Supremo sobre Renan ter sido tão criticada, ele afirmou que tinha a impressão de que essa era a decisão que seria tomada quando o julgamento fosse encerrado. Tanto é que  o decano, Celso de Mello, que tinha votado como manda a maioria, também fez essa ressalva. É o que a Constituição permite. O que a Constituição diz? Recebida a denúncia contra o presidente da República —  e ele só responde por casos de crime cometido durante o mandato — ele será afastado por seis meses. A rigor, isso não deveria afetar o mandato, nem a eleição para presidência da Câmara e do Senado. Esse sempre foi o meu referencial. Era desejável que o constituinte tivesse escrito isso, mas ele não escreveu, não colocou isso. E há formas especiais de perda dos mandatos e dos cargos do presidente da Câmara e do Senado.
 
2 – Sobre a reação da sociedade em relação ao presidente do Senado, por não ter sido acatado de imediato a decisão da liminar, Gilmar disse que essa é uma questão que vem se tornando muito delicada nos últimos anos, em função talvez até da sobrecarga e da dificuldade de se fazer julgamentos no plenário do Supremo. Ele falou que foi montando inclusive o sistema para turmas, por conta dessas dificuldades. As exigências de submeter as questões de preliminares ao plenário, antes da decisão, têm sido flexibilizadas, não vêm sendo cumpridas. Cada vez mais os ministros decidem monocraticamente aquilo que, na exigência legal, deveria ser decisão do plenário, como no caso dessa ADPF. O que aconteceu é que a lei exigia que o tema fosse levado ao plenário, e a decisão foi tomada monocraticamente na segunda-feira. Poderia ter esperado até quarta-feira, e ter sido pautada no plenário. Mas preferiu-se conceder a decisão monocraticamente. E, assim, a Mesa do Senado exigiu que fosse cumprido aquilo que está na legislação, e que a decisão fosse tomada pelo plenário. Para ele, não se deveria executar uma decisão que era precária, que não atendia aos requisitos legais.
3 – Questionado se a decisão de Renan, tida como desobediência para alguns, não pode soar mal para o cidadão comum, ele disse desconhecer as circunstâncias do caso. Mas afirmou que no caso específico, a lei exige o pronunciamento do plenário, até por causa da gravidade da situação. Era a decisão do Supremo, não de um ministro individualmente. Essa ADPF gerou uma série de sobressaltos. Ela foi pautada num dia qualquer, quando o ministro Teori Zavascki tinha o pedido de afastamento do Eduardo Cunha. O julgamento não se deu naquele momento, porque o ministro Teori trouxe seu despacho e a sua decisão para referendo, naquele mesmo dia, e que ficou prejudicada a situação. Houve o início do julgamento, teve pedido de vista e, logo após, uma escaramuça entre o relator e o ministro Toffoli, por conta do pedido de vista do processo não ter sido enviado ao gabinete do ministro Toffoli. “Então vem um novo pedido ou a reiteração do pedido ao gabinete, e isso se decide monocraticamente? Nós, do Supremo, deveríamos ser os primeiros a cumprir o que está no nosso regimento”, afirmou.
4 – Gilmar disse que apenas fez blague ao sugerir o impeachment do ministro Marco Aurélio. Mas afirmou: “Temos pago um preço muito alto por conta de idiossincrasias, toda hora, ao longo dos anos. Se fizer um levantamento na história, o tribunal é chamado para apagar incêndios causados por essas posições. Embora cada ministro tenha uma carga de poder imenso, o que importa é a instituição, o colegiado. Devemos reparar na jurisprudência do tribunal e seguir essa jurisprudência. Quando atuamos como se fôssemos seres únicos e onipotentes causamos problemas institucionais graves. E para ele, isso é o que tem acontecido, repetidas vezes. Seja lá qual fenômeno mental que estimule esse tipo de atitude, de fato, isso tem se repetido. Não é um bom exemplo”.
5 – Gilmar não quis falar sobre a razão do ministro Marco Aurélio ter agido dessa forma. “Não vou fazer psicografia da alma e nem psicologia nesse momento. Cada qual que responda por suas responsabilidades. Agora pode se ter espaços para essas idiossincrasias em outros ambientes, não no tribunal. Podemos até errar, o plenário corrige, quando não sabemos ainda jurisprudência e tudo mais. Porém, quando conhecemos a jurisprudência e a clareza dos textos, temos que observá-los” E adiantou: “A legislação não deixa dúvidas de que as liminares têm que ser decididas pelo plenário, porque estamos suspendendo atos legais. Portanto, é muito difícil justificar essa atitude. A lei permite sessões em caso de urgência. Qual era urgência de fazer na segunda-feira, e não na quarta-feira? Na quarta, seria a decisão do colegiado, e talvez o plenário não referendasse, como acabou não referendando”. Gilmar Mendes disse que o Supremo poderia ter passado sem esse incidente.
 
6 – Ainda se referindo a impeachment, Gilmar Mendes disse que a qualquer hora, alguém contrariado pode pedir um impeachment do presidente do Supremo, ou de algum membro. E o Senado em geral arquiva e tudo mais. É preciso levar isso a sério quando se age com ilegalidade, de forma sistêmica, repetida. Porque não é dado ao ministro do Supremo causar tamanha insegurança jurídica, seja lá em que nome for, a título de imaginar que seja. Claro que podemos criar um clima de hermenêutica. Mas este caso é um caso de ilegalidade aritmética, porque, se a lei exige que a decisão liminar seja tomada por seis votos, e alguém decide sem urgência tomar a decisão, por um voto, estamos falando de uma ilegalidade. Não se pode imputar inconsciência, inexperiência ou analfabetismo jurídico. Então, alguma providência tem que se tomar, para benefício de todos e da instituição. Tem que se refletir nesse sentido, se nunca foi discutido, tem que ser discutido.
 
7 – Gilmar Mendes disse na entrevista que sempre teve um posicionamento muito claro sobre esses temas. “As coisas que estou dizendo nesta entrevista, já disse no plenário. Esse é um jogo institucional muito complexo, com diferentes players. A Corte não está jogando sozinha no cenário político. E isso começa a ter reações. Eu tenho sido uma das vozes recomendando cautela. Por exemplo, quando nós vemos agora a Câmara discutindo esse pacote das 10 medidas, aprovar medidas restritivas ao Judiciário e ao Ministério Público com mais de 400 votos, percebemos que há um desconforto e um certo incômodo a esse empoderamento e a essa alienação, vamos dizer assim, do aparato judicial, da própria polícia e do Ministério Público”.
 
8 – Ele disse que não sabe se o Supremo levou em conta o fato de Renan ser um pilar de sustentação do governo Temer. Ele acha que o tribunal se limitou a fazer uma análise quanto à legalidade da medida. Mas ressalvou que, quando se discute esse tipo de tema, não se pode tomar decisões no sentido de que se faça justiça, ainda que o mundo pereça. Têm que se considerar todas as consequências. Quem toma a decisão tem que, de fato, saber se será capaz de executá-la. “Tenho dito sempre: não devemos acender fósforo para ver se tem gasolina no tanque. Porque você pode colher como resultado o que se assemelha ao que foi colhido neste caso, uma explosão”. E completou afirmando que a suspensão de um presidente da Câmara, Senado e de uma Assembleia Legislativa, órgãos representativos da comunidade, são decisões graves. “Pois estamos afetando o próprio Poder, a coordenação do Poder, o equilíbrio do Poder. Temos de fazer uma análise mais sofisticada”.
 
9 – Questionado se protagonismo do Judiciário não atrapalha, ele disse que há muitos problemas. Um deles é o fato da Constituição ter aberto a possibilidade para associações e ações sindicais fazerem essas ações diretas. Portanto, qualquer segmento mais representativo consegue levar ao Supremo os temas mais delicados do ponto de vista da constitucionalidade. Por outro lado, também se previu que o Supremo faça o controle da omissão legislativa, e, por isso, este é um tema de embate, pois a toda hora se reclama que o Congresso deixou de legislar. “No âmbito do Supremo, é quase que inevitável aquilo que chamo de judicialização da política. Porém, isso se estendeu para todos os ambientes judiciais — do vereador ao prefeito, e do deputado estadual ao governador, todos reclamam das intervenções judiciais, a judicialização da saúde pública, as recomendações que vêm do Ministério Público para essa ou aquela diretriz de abuso de autoridade”.
 
10 – Para Gilmar Mendes, o próprio Congresso foi cedendo espaço, por exemplo, ao aprovar a Lei da Ficha Limpa, em 2010. Pressionado pela opinião pública e por determinados grupos, o Congresso aprovou uma lei bastante ruim, com grandes deficits sistêmicos, mas que empodera ainda mais o Ministério Público e os juízes. Basta uma decisão de segundo grau para que alguém seja afastado da política, se torne inelegível. “Nós temos tido casos bizarros. Recentemente, em Mato Grosso, o Tribunal de Justiça se reuniu em um sábado para confirmar a condenação de um prefeito e tirá-lo do processo eleitoral porque precisava da decisão de segundo grau antes das eleições. São casos abusivos que vão se verificando em função da Lei da Ficha Limpa. Isso gera no estamento político também um tipo de reação que, agora, começa a se perceber. Acredito que isso precisa ser devidamente coordenado, criando normas procedimentais em nome de maior segurança jurídica, criando essa análise por parte dos atores do Ministério Público e do Judiciário em geral” disse.
 
11 – Gilmar disse entender que a sociedade não quer ser complacente com malfeitos, corrupção e coisas do tipo. Por isso foi às ruas no ultimo domingo. Agora, frisou que é preciso contar a história inteira para a sociedade. Em geral, a sociedade recebe também o tema filtrado. Em relação às 10 medidas, elas foram concebidas, talvez, em um laboratório. As pessoas não levaram em conta que elas passariam por um processo crítico ou consideraram que diante do empoderamento de determinados segmentos, principalmente a pluralidade dos atores da Lava-Jato, elas seriam aprovadas. No que diz respeito ao habeas corpus, basta consultar qualquer advogado com alguma experiência, que ele diria que o projeto acabava com o habeas corpus no Brasil. Talvez fosse o AI-5 nosso, em relação ao habeas corpus em tempos modernos, porque praticamente não se daria mais liminar em habeas corpus a não ser que o sujeito estivesse preso. Não se daria mais habeas corpus para anular processos, trancar inquéritos e coisas do tipo. Nesse episódio da Lava-Jato, o Supremo foi econômico na concessão de habeas corpus. É bom que o cidadão saiba que, quando o juiz tem medo de conceder habeas corpus, o seu direito está sendo ameaçado.
 
12 – Gilmar disse ver a questão do foro privilegiado com muita dificuldade, porque há uma desconfiança recíproca na relação dos Poderes com o Judiciário. “Seria muito fácil se tivéssemos essa tradição e a despolitização da Justiça, o que está longe de ocorrer entre nós. É normal que os políticos tenham desconfiança e que possam ser expostos a um processo injusto, isso pode ocorrer. O nosso problema, hoje, no Supremo, é que o foro foi ultradimensionado, ele abrange todos os parlamentares”. E lembrou que mais de um terço do Congresso hoje é investigado, o que dificulta enormemente a tarefa do Supremo.
13 – Sobre um possível  enfraquecimento do STF no caso Renan,  Gilmar disse que isso é absolutamente normal. Uma das funções da jurisdição constitucional, em muitos casos, é ter capacidade de adotar uma postura contra o majoritário. A população, em geral não tem filtro, não tem mecanismos mais sofisticados de fazer avaliação do processo. Ela opera em uma lógica binária, está certo ou errado, sou a favor ou contra o bandido. A Justiça é mais complexa que isso. É normal que isso ocorra. “É preciso que nós expliquemos que, também por isso, é que se dão garantias aos juízes, diferente do que se dá até ao sistema político, porque muitas vezes ele vai ter que enfrentar esse tipo de situação. Eu me lembro que, na minha presidência, eu tive que conceder dois habeas corpus ao Daniel Dantas e fui achincalhado por isso. No final, se descobriu que o criminoso era o delegado e se viu todo o abuso cometido. O grande herói da época era o juiz De Sanctis, que acabou até merecendo punição por parte do CNJ. O tribunal tem que saber conviver com isso”. Para Gilmar, a população, em geral, diante das informações, não sendo especializada, opera nessa lógica binária, certo ou errado. “Em uma comunidade ativa como é a nossa, com todos esses meios de comunicação, é compreensível isso. Agora, eu entendo, pior seria se o STF, a partir de um erro enorme daqueles, decidisse persistir no erro por coleguismo, companheirismo”.
14 – Gilmar Mendes disse na entrevista que tem a impressão de que hoje há maior diálogo entre sistemas políticos e um ambiente de liberdade. “Estamos respirando e buscando soluções e certamente, vamos avançar”. Sobre as delações da Odebrecht, ele acha que o tribunal vai fazer os ajustes possíveis e buscará a colocação de mais instrutores para trabalhar com o relator, ministro Teori. Já sobre o fato de ser acusado de carrasco da Lava-Jato, ele disse não se sentir ofendido. “Eu fico muito orgulhoso de ter sido carrasco, por exemplo, dessas medidas como o teste de integridade, aproveitamento de prova ilícita. Mas isso não tem nada a ver com a Lava-Jato. Quando discutimos a Lava-Jato no plenário, lá na turma, eu tenho apoiado o ministro Teori em vários casos em que ele tem mantido as prisões. Recentemente, estive no Senado com o juiz Moro. Agora, daí a subscrever as propostas da equipe da Lava-Jato, em matéria de legislador, eu prefiro os legisladores que temos. Não vejo esses personagens como legisladores e, obviamente, já estou muito velho para bater palma para maluco dançar. Quando percebo distorções, eu aponto o que é da minha responsabilidade. Não vejo que se deva empoderar ainda mais órgão já empoderado, como o Ministério Público e o próprio Judiciário. Quando se pensa em tornar mais difícil a concessão de habeas corpus, eu vejo isso com preocupação. Fico muito orgulhoso, eu gosto de traduzir, chamar as coisas pelo nome e assumir responsabilidade. Não fiz críticas pelas costas, disse as minhas divergências, agora no Senado, com o juiz Moro, face a face, dizendo as coisas com as quais eu não concordo. E sou um defensor, desde 2008 ou 2009, de uma nova lei de abuso de autoridade e não vejo que isso seja feito contra a Lava-Jato, isso se faz um favor para os cidadãos do Brasil”.
 
15 – Sobre o abuso de autoridade, que ficou para ser visto no ano que vem, Gilmar Mendes disse que entregou sugestões no dia e certamente ele as incorporou às ideias. Mas ele acha que se pode discutir mais o projeto. “Eu acho que estamos com uma lei de abuso de autoridade de 1965, e nós empoderamos as autoridades ao longo desses anos de maneira muito clara, o texto constitucional e a legislação reforçaram. Agora, questionar abuso de autoridade de promotor, de juiz e de delegado não tem nada a ver com combate à criminalidade. O combate à criminalidade tem que se dar nos termos da lei, respeitando o princípio da legalidade, se não você equipara o juiz a um justiceiro qualquer, e isso não pode ocorrer”. Ele afirmou ainda que as coisas precisam ser bem definidas e que haja um novo estatuto sobre abuso de autoridade. “Todos sofrem abuso de autoridade: aquele que fica na fila, que tem que contratar despachante, aquele que é atacado por um policial, que é atingido por apreensões indevidas, invasão de domicílio.Tudo isso a lei tenta atender, portanto, não tem como foco operações policiais ou judiciais”.

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