FILHO DE POBRE VIRANDO DOUTOR: ONTEM, HOJE E O SENTIDO REAL DA ASCENSÃO SOCIAL –
Como filho de pais pobres, passando no vestibular da UFRN no curso de Direito, sem nenhuma proteção ou benefício, mas com esforços de estudo, durante décadas, a frase “filho de pobre virou doutor” foi usada como símbolo máximo de superação. Representava o rompimento de barreiras estruturais, a conquista de um espaço historicamente reservado a poucos e a vitória contra o destino imposto pela desigualdade.
Antes de qualquer governo, antes de qualquer política pública moderna, esse fenômeno já existia, ainda que de forma isolada, rara e quase sempre guiada por trajetórias excepcionais. O Brasil sempre teve histórias de jovens de origem humilde que, com esforço pessoal e apoio comunitário, conseguiram alcançar a universidade. É verdade: isso não começou com nenhum partido político. É fruto da persistência humana e do desejo de mudar de vida.
Contudo, dizer apenas isso seria simplificar uma realidade muito mais complexa.
A Democratização do Acesso: Uma Porta Aberta, Não Uma Garantia
Com o passar dos anos, especialmente nas primeiras décadas dos anos 2000, políticas públicas ampliaram o acesso ao ensino superior. Mais vagas, mais universidades, mais crédito estudantil, mais cotas, mais programas de permanência. Isso não significa que antes não havia pobres na universidade; havia, mas eram exceção. A porta se abriu, mas entrar não é o mesmo que permanecer, e muito menos que ascender socialmente.
A ascensão social não depende só do diploma. Depende de mercado, economia forte, investimentos, estabilidade, indústria, tecnologia, pesquisa, produtividade. E é aqui que a reflexão muda de direção.
Quando o Diploma Não Garante o Futuro
Nos últimos anos, tornou-se comum encontrar mestres, doutores e profissionais extremamente qualificados trabalhando como motoristas de aplicativo. É uma realidade dura, silenciosa e frequentemente ignorada. Isso não é culpa de um aplicativo, é consequência de uma economia que não consegue absorver a mão de obra que ela mesma formou. Não basta formar “doutores”; é preciso ter onde empregá-los. Não basta dar um diploma; é preciso dar condições para que esse diploma valha algo no mundo real. O Uber, nesse contexto, virou abrigo. Abrigo do desemprego. Abrigo da falta de oportunidades. Abrigo de um mercado que não cresceu no mesmo ritmo da educação.
O resultado? Gente superqualificada disputando espaço em profissões que não exigem sequer ensino superior.
A Pergunta que Ninguém Faz: Isso é Mobilidade Social ou Colapso Social?
É fácil vender o discurso de que “nunca houve tantos doutores”, “nunca houve tanto acesso à educação”, mas é difícil admitir que a formação acadêmica no país avançou mais rápido que a capacidade econômica de absorver esses profissionais. O filho de pobre virar doutor sempre foi motivo de orgulho. Mas o doutor virar Uber virou símbolo de outra coisa: a estagnação da mobilidade social. Onde houve avanço? No acesso. Onde houve falha? Na transformação desse acesso em progresso real. Diploma sem oportunidade vira frustração.
O Problema Não É Ter Virado Uber. O Problema É Ter Sido Obrigado a Ser.
Ninguém desonra sua formação ao dirigir um carro. Trabalhar nunca foi vergonha. A vergonha é o país não oferecer caminhos melhores para quem estudou, pesquisou, se dedicou e acreditou na promessa da educação como via de ascensão. O Uber não é o vilão. É o sintoma. Um sintoma de:
– economia baixa,
– falta de indústria,
– corte de bolsas,
– fuga de cérebros,
– precarização do trabalho,
– compressão salarial,
– falta de planejamento econômico de longo prazo.
O filho de pobre virou doutor? Sim. Mas hoje o doutor virou refém de uma economia estagnada.
Para Onde Vai a Mobilidade Social do Brasil?
O debate não deve ser reduzido a “antes do PT” ou “depois do PT”. Essa discussão é rasa demais para um país tão complexo. A pergunta mais honesta é: Que tipo de Brasil estamos construindo, onde o diploma deixa de ser passaporte para o futuro e vira apenas um pedaço de papel?
Precisamos de uma economia que:
– valorize a ciência,
– gere empregos qualificados,
– incentive a indústria,
– fortaleça a inovação,
– permita que o jovem sonhe, e que o adulto não precise sobreviver de frustrações.
A ascensão social não pode ser apenas estatística: precisa ser real, sustentável, contínua. O filho de pobre virar doutor é bonito. Mas o sonho só se completa quando o doutor não precisa abrir mão da própria profissão para sobreviver.
Natal, 15 de novembro de 2025.
Raimundo Mendes Alves – advogado, procurador aposentado e vereador em São Gonçalo do Amarante-RN
