/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_59edd422c0c84a879bd37670ae4f538a/internal_photos/bs/2023/E/i/CKwAE3TV2hyopX4Y7mHA/whatsapp-image-2023-09-07-at-13.46.02.jpeg)
No dia em que pediu exoneração do Ministério Público de São Paulo, Mariana* pôs fim a um sonho e a um pesadelo, de uma vez só.
Sonho porque ela abandonava ali o plano se tornar promotora de Justiça. E pesadelo porque, nos dez anos anteriores, havia enfrentado uma pressão insalubre no trabalho e desenvolvido um quadro de depressão, síndrome do pânico e burnout (esgotamento físico e mental associado à atividade profissional). Pensou também em tirar a própria vida.
Já Helena* conta que era chamada de burra. E Joana* cita ter sofrido assédio sexual.
Essas são algumas das pessoas que relataram ao g1, sob condição de anonimato, uma rotina de assédio no MPSP. Por medo de retaliações, elas não quiseram se identificar. Todas tinham como chefes promotores e procuradores, alguns na entidade até hoje. O MP negou que exista uma cultura de assédio na instituição.
Comparando os primeiros sete meses de 2023 ao mesmo período do ano anterior, o número de afastamentos justificados por problemas de saúde mental no órgão cresceu 24%. Entre janeiro e julho de 2022, foram 83 episódios. Neste ano, o número subiu para 103. Os dados foram obtidos pelo g1com exclusividade, via Lei de Acesso à Informação, e se referem a servidores da capital e da Grande São Paulo.
Além disso, entre junho de 2022 e maio de 2023, três servidores do órgão cometeram suicídio. Os funcionários, então, se mobilizaram e criaram uma campanha chamada “Nenhum servidor a menos”, para pedir medidas de apoio à saúde mental ao órgão.
Entre outras atribuições, o MP fiscaliza o poder do estado e garante direitos da população. “Em casa de ferreiro, o espeto é de pau”, descreve um dos servidores entrevistados. O MP tem cerca de 5,6 mil servidores concursados no estado.
Em nota, o MPSP disse que “refuta, veementemente, a infundada alegação segundo a qual a cultura do assédio vicejaria na instituição”. O órgão disse ainda que, nos últimos três anos, oito casos de assédio chegaram à Corregedoria, e em seis houve sanções aos acusados.
Os servidores ouvidos pelo g1 disseram que não sentem apoio da instituição no acolhimento de denúncias de assédio. Para eles, o forte corporativismo, principalmente entre os promotores e procuradores, afasta a possibilidade de uma denúncia à corregedoria da entidade.
Nesta reportagem, você vai ler sobre:
- “Quando adoeci, não servi mais”, diz Mariana
- “[O promotor] Rasgava papel que eu grampeava falando que nem grampear eu sabia”, afirma Helena
- “Ele [um superior] dizia: ‘Poderia ficar horas nesta sala com você”, conta Joana
- Queixas de “cultura de impunidade” no órgão
- Casos de três suicídios de servidores
- A campanha “Nenhum Servidor a Menos”, organizada pelos funcionários
- O que diz o MPSP
‘Quando adoeci, não servi mais’
Mariana começou a estagiar no MP quando ainda estava na faculdade. Após se formar, passou em um concurso para trabalhar como analista de promotoria em uma comarca do Vale do Ribeira, em São Paulo. Ela conta que, lá, o promotor a que era subordinada a tratava com gritos e palavrões.
Mariana diz que, certa vez, estava transcrevendo um depoimento colhido pelo promotor, que reclamou da suposta demora na execução da tarefa. “Ele me puxou e gritou ‘sai daqui, não está dando certo’, na frente do depoente. Me senti muito humilhada”, lembra ela.
De acordo com Mariana, esse mesmo promotor enviava, à meia-noite, mensagens sobre trabalho. Ela diz que, após cinco anos no cargo, passou a assumir as funções do superior, mesmo ocupando cargo de analista. “Eu que decidia muitas coisas, e os promotores nem liam os processos, só iam [ao local de trabalho] para assinar [documentos]”.
Mariana atribui os transtornos mentais de que passou a sofrer ao modo como era tratada, à sobrecarga profissional e à pressão no ambiente de trabalho. “Eu tinha que tomar remédio de manhã, para trabalhar, e para dormir.”
A depressão e o burnout a levaram a pedir várias licenças. Ao voltar de uma delas, descobriu que uma promotora havia aberto contra ela um Processo Administrativo Disciplinar (PAD), uma espécie de investigação interna do MP. O objetivo era saber se Mariana tinha condições de exercer sua função. “Ou seja, depois de anos como analista, eu não servia mais para aquele cargo?”, questiona.
Após a análise do caso, ela recebeu uma advertência e foi transferida para a capital paulista, onde a situação não melhorou. Segundo Mariana, a chefia falava aos gritos e a tratava “como se tivesse cometido um crime” por ter mudado de regional após relato de problemas de saúde mental e processo administrativo.
“Quando adoeci, não servi mais para nada”, afirma. “Pensei várias vezes em tirar minha vida. Pensava, vou sair dessa instituição porque não quero morrer.”
A analista, que entrou na instituição com o sonho de se tornar promotora, pediu exoneração em 2020. Hoje, ela trabalha em um escritório particular de advocacia e diz não tomar mais nenhuma medicação para os problemas que desenvolveu enquanto estava no MP.
‘Falava que nem grampear eu sabia’
Helena era auxiliar de promotoria e tinha como função atender a população que procurava o MPSP com algum pedido de investigação. Cabia a ela ouvir as demandas e repassá-las a um promotor.
Segundo Helena, tanto o promotor quanto um oficial de promotoria a chamavam de “inocente”, porque ela supostamente se sensibilizava em excesso com os problemas relatados por idosos e pessoas socialmente vulneráveis.
“Gritavam comigo. O oficial, um dia, me chamou de burra, porque eu fazia atendimento ao público e ‘acreditava’ em tudo que as pessoas me falavam”, afirma.
Até mesmo uma tarefa simples, como levar os pesados processos impressos em papel para o gabinete do promotor era um transtorno. O oficial se incomodava com o barulho das rodas dos carrinhos de ferro utilizados para o transporte dos documentos. “Ele gritava se eu fizesse barulho. Batia a porta e saía resmungando. Eu tinha que ficar muda e praticamente levitar para entrar na sala dele sem incomodar.”
“Ele colocava defeito em tudo que eu fazia. Rasgava papel que eu grampeava, falando que nem grampear eu sabia”.
Helena disse que todos os dias chorava ao chegar em casa na volta do trabalho. Depois, começou a fazer terapia. “Quase me separei do meu marido, na época. Chegou um dia em que ele falou: ‘Ou você larga esse serviço ou para de reclamar'”, lembra ela.
Helena não largou o emprego, e as agressões verbais continuaram. Certa vez, o promotor gritou com ela na frente de vários funcionários do fórum. Helena, então, foi ao banheiro chorar, e uma testemunha foi atrás e a incentivou a denunciar o promotor por assédio. Só então o caso foi levado a um diretor regional, quando a situação já durava dois anos.
Meses depois, o diretor a perguntou se havia alguma cidade para a qual ela gostaria de se mudar. Helena foi transferida. “Percebi que essa seria a única saída. E os dois [o promotor e o oficial] continuam lá, maltratando população e estagiários até hoje.”
‘Poderia ficar horas nesta sala com você’
Quando ingressou na sede do MP na capital paulista, Joana, de 26 anos, era a mais nova analista de promotoria de uma equipe de dez pessoas.
Assim como os colegas, ela era responsável por escrever pareceres posteriormente corrigidos por um superior que tinha o hábito de chamar os analistas em sua sala para apontar o que deveria ser ajustado.
Ela diz que, aos poucos, foi notando que seus pareceres eram corrigidos com muito mais rigor do que os relatórios dos outros colegas. As regras impostas a ela mudavam a todo instante e não condiziam com as orientações dadas aos demais funcionários.
Ao ficar sozinha na sala com o superior para ouvir dele o que havia de errado com os documentos que ela produzia, o homem começou a fazer comentários sobre a aparência física da subordinada. “Ele dizia: ‘Nossa, você é tão linda, poderia ficar três horas nesta sala com você’.”
O chefe também fazia ameaças veladas, enquanto fazia as correções. “Você quer ser promotora, né? Você sabe que não é só a prova oral, a carta de recomendação também é importante”, lembra ela.
Joana admite então que bolou um plano. Ela trocou um parecer seu com o de um colega, que costumava receber poucos apontamentos do chefe. Como de costume, o colega saiu da sala com raras observações a respeito do documento. Já Joana, que estava com o material produzido originalmente pelo colega, saiu do gabinete com o texto todo rasurado e uma lista de reclamações sobre o seu trabalho de analista. Para ela, aquela situação comprovava uma perseguição ao seu trabalho.
Após confrontar o superior e ter uma crise de choro no gabinete, viu os assédios pararem. Hoje, o chefe está aposentado.
‘Absolutamente imprestável’
Ainda segundo os servidores ouvidos pelo g1, medidas administrativas são usadas como punições abusivas para os servidores.
Internamente, os chamados Processo Administrativo Disciplinar (PAD) são vistos como uma mancha no currículo dos servidores, o que prejudicaria na busca por cargos melhores dentro da instituição.
No concurso para promotor, por exemplo, há uma etapa do processo seletivo chamada “investigação social”, na qual é feita uma análise para verificar se o concorrente teve uma vida ilibada. Nesse momento, um PAD pode ser levado em conta, com resultado potencialmente desfavorável aos funcionários.
Segundo um dos funcionários ouvidos, a cultura de assédio moral permeia o MP a ponto de não haver constrangimento de um promotor para registrar esse tipo de conduta em um documento oficial. Em um despacho ao qual o g1 teve acesso, um promotor escreveu que o parecer técnico realizado por uma funcionária era “absolutamente imprestável”.
Suicídios de servidores
Em um período inferior a um ano, de junho de 2022 a maio de 2023, três servidores do MPSP se suicidaram.
No final de tarde de 29 de junho de 2022, um analista jurídico de 48 anos se matou na sede do MPSP, no Centro da capital paulista. De acordo com o boletim de ocorrência ao qual o g1 teve acesso, o profissional tinha diagnóstico de depressão e tomava remédios controlados.
Os outros dois casos aconteceram em 10 e 11 de maio de 2023. O do dia 10 envolveu um funcionário da engenharia que estava afastado por depressão. No seguinte, um motorista também tirou a própria vida. Ele estava a trabalho, em um caminhão da instituição.
Em 12 de maio, um outro motorista foi até um viaduto nas proximidades do MP, mas foi impedido por policiais de se jogar.
Especialistas reforçam que o suicídio é multifatorial. “Não sabemos todos os motivos que levaram uma pessoa a chegar a esse ato de desespero. O suicídio deixa mais perguntas do que respostas”, disse a psicóloga Karen Scavacini, fundadora do Instituto Vita Alere de Prevenção e Posvenção do Suicídio.
Ela explica que, além do contexto social, cultural, econômico, psicológico e biológico, há questões laborais a serem levadas em conta. Ou seja, o trabalho é uma das peças do quebra-cabeça.
“Nunca vamos saber as peças que levaram cada uma dessas três pessoas a fazer isso”, aponta a psicóloga.
Já o MPSP disse que “uma pequeníssima fração de servidores, aproveitando-se de tragédias que afetaram a todos nós, tenta vincular ao ambiente profissional três casos de suicídio que infortunaram as famílias e os colegas de trabalho que de fato estimavam as vítimas, quando na verdade tais acontecimentos guardam relação com fatores de ordem pessoal”.
‘Nenhum servidor a menos’
Em 2022, servidores do MPSP começaram a se articular em várias frentes para cobrar medidas do órgão diante de denúncias de assédio moral.
Fonte: G1RN