Pela primeira vez, uma eleição em Israel não resultou em governo. Com o voto de 74 de seus 120 deputados, o Knesset, o Parlamento israelense eleito no último dia 9 de abril, decidiu nesta madrugada pela própria dissolução. Novas eleições foram convocadas para 17 de setembro.
A decisão inédita de dissolver o Knesset foi uma manobra desesperada do premiê Bibi Netanyahu, diante da impossibilidade de constituir a maioria de 61 deputados necessária para formar seu governo.
Caso o Parlamento não tivesse se autodissolvido, o presidente Reuven Rivlin, desafeto de Bibi, provavelmente convocaria a tentar formar um governo o general Benny Gantz, cujo partido Azul e Branco conquistou em abril o mesmo número de cadeiras do Likud de Bibi (35).
As novas eleições eram a única forma de Bibi manter o poder, ainda que temporariamente, para tentar se blindar diante do indiciamento iminente nos dois escândalos de corrupção em que foi denunciado pela Procuradoria-Geral, acusado de oferecer favores ilícitos em troca da cobertura favorável de duas empresas de comunicação.
Um terceiro escândalo, que investigava o pagamento de propinas na compra de submarinos alemães, não resultou em denúncia em Israel, embora ainda seja investigado na Alemanha. No quarto, sobre uso indevido de verbas públicas em mordomias como chefs particulares e champanhe cor-de-rosa, a mulher de Bibi, Sara, fechou ontem um acordo com a Justiça para evitar julgamento, em troca de uma multa.
A vitória em abril parecia lhe ter dado o fôlego necessário para se esquivar da Justiça. Seus planos naufragaram graças à resistência do ex-ministro Avigdor Lieberman, líder do partido Israel Nossa Casa, cujas cinco cadeiras eram essenciais para Bibi formar sua maioria.
O pretexto usado por Lieberman foi insistir que entrasse em vigor uma lei (já aprovada) que amplia o serviço militar para estudantes de escolas rabínicas e religiosas. A exigência era inaceitável aos dois partidos religiosos que, com 16 cadeiras no Knesset, também eram essenciais para Bibi formar seu governo.
Quem está acostumado a acompanhar de longe a política israelense pode ter a impressão de que ela se resuma a um embate em torno da questão palestina. Nada mais falso. Israel é uma sociedade plural, de altíssima complexidade, dividida em torno das mais variadas questões, capaz de produzir animais políticos com todos os tipos de mutação.
Um partido libertário defende a liberação da maconha, nem quer ouvir falar em acordo de paz e planeja reerguer o Templo de Salomão bíblico na Esplanada das Mesquitas, em Jerusalém. Outro de extrema-esquerda, que sempre defendeu o estado palestino, hoje enfrenta o dilema de aceitar deputados árabes e perder o caráter judaico. Os partidos árabes obtiveram em abril 10 cadeiras no Knesset. A aliança de extrema-direita, com racistas favoráveis à expulsão deles, 5.
Nessa fauna diversa, Lieberman é um animal singular. Chegou a Israel nos anos 1980, vindo de Chisinau (hoje capital da Moldova, na época parte da antiga União Soviética). Percebeu logo a relevância política que a chegada de 1 milhão de russos, cuja imigração fora liberada por Mikhail Gorbachev, representaria em Israel.
Quando chegou a Israel, Lieberman foi morar numa colônia da Cisjordânia, depois se tornou um dos principais adversários da concessão de um estado aos palestinos. Chegou a propor que os árabes israelenses prestassem uma espécie de juramento para manter sua cidadania. Ao mesmo tempo, decidiu usar os privilégios dos ortodoxos como pretexto para projetar sua liderança, num cenário em que a liderança de Bibi se enfraquece diante da direita.
A relação entre os dois dura mais de 30 anos. Lieberman já foi o braço-direito de Bibi no Likud, responsável tanto por reerguer as finanças do partido nos anos 1990 quanto pela campanha que o levou à vitória, a primeira a priorizar o discurso da “segurança” em oposição ao da “paz” – narrativa que mantém Bibi no poder há dez anos.
Rompeu com o Likud no final dos anos 1990 para criar um partido que atendesse mais de perto às demandas do eleitorado de imigrantes russos, o Israel Nossa Casa. Desde então, já se aproximou e se afastou de Bibi várias vezes. Dificultou e facilitou a formação de outros governos na medida de seus interesses.
Sempre ocupou um espaço de destaque, apesar da pequena representatividade eleitoral. Seu maior posto foi o ministério da Defesa, que ocupou até romper outra vez com Bibi no ano passado, sob o pretexto de divergir em relação à política de apaziguar os ataques do Hamas em Gaza com dinheiro do Catar (repetida novamente este ano).
Lieberman já foi condenado por agredir uma criança e enfrenta também acusações de corrupção. Sabe que não tem a envergadura política para almejar o cargo de primeiro-ministro. Mas também sabe que pode ajudar ou atrapalhar qualquer um que tenha. Por isso mesmo, sempre oscilou entre aliado e ameaça aos planos de Bibi. Era previsível que dali poderia vir uma traição.
Fonte: G1
