“A cloroquina foi recomendada pelo Ministério da Saúde na época do surto de chikungunya, em 2016. Por que ela não pode ser usada agora, contra a Covid-19?” Esse é um dos questionamentos mais frequentes dos apoiadores do chamado “tratamento precoce”.

Repetido à exaustão desde o segundo semestre de 2020, quando as evidências científicas já apontavam para a ineficácia do medicamento contra a infecção causada pelo coronavírus, essa informação ganhou uma “sobrevida” na CPI da Covid, onde senadores e depoentes estão repetindo o argumento.

Um dos participantes que falou sobre o assunto foi o ex-ministro da saúde, o general Eduardo Pazuello, na sessão do dia 19 de maio. “Na crise da chikungunya, em 2017, o Ministério da Saúde criou protocolos para uso da cloroquina — eu tenho todos eles — em altas doses”, afirmou.

A mensagem foi reforçada dias depois pela médica Mayra Pinheiro, secretária do Ministério da Saúde: “Ela [a cloroquina] já foi usada em outras doenças e o próprio Ministério da Saúde já recomendou para doenças virais, para as arboviroses. Eu trouxe para o senhor um protocolo de chikungunya em que o Ministério da Saúde preconiza”.

No dia 1º de junho, o senador Luis Carlos Heinze (PP-RS) insistiu no tópico. “Chikungunya, que vossa senhoria também sabe, é um vírus e é combatido com hidroxicloroquina. Portanto, não tem por que dizer que não tem eficiência nenhuma o tratamento”, declarou.

Essas e outras falas, no entanto, não trazem o contexto necessário para entender a situação: a cloroquina (ou hidroxicloroquina) não foi usada contra o chikungunya como um antiviral. O raciocínio da prescrição seguiu uma outra lógica e, aliás, o medicamento continua a ser indicado até hoje para alguns pacientes que sofreram com essa doença — só que em situações bastante específicas.

O que é a chikungunya

A ciência conhece o vírus chikungunya desde a década de 1950, quando os primeiros casos foram relatados na África. Ele é transmitido a partir da picada dos mosquitos Aedes aegypti ou Aedes albopictus.

A primeira epidemia foi registrada na Tanzânia em 1953. O nome chikungunya, aliás, vem da língua maconde, que é falada no país, e significa “contorcer-se” ou “dobrar-se”. É uma referência direta a uma das características mais marcantes da enfermidade: as fortes dores nas articulações e nos músculos que fazem o paciente ficar encolhido. Em muitos casos, os incômodos podem se prolongar por meses a fio, mesmo quando a virose já está curada.

A ciência conhece o vírus chikungunya desde a década de 1950, quando os primeiros casos foram relatados na África. Ele é transmitido a partir da picada dos mosquitos Aedes aegypti ou Aedes albopictus.

A primeira epidemia foi registrada na Tanzânia em 1953. O nome chikungunya, aliás, vem da língua maconde, que é falada no país, e significa “contorcer-se” ou “dobrar-se”. É uma referência direta a uma das características mais marcantes da enfermidade: as fortes dores nas articulações e nos músculos que fazem o paciente ficar encolhido. Em muitos casos, os incômodos podem se prolongar por meses a fio, mesmo quando a virose já está curada.

E essa condição continua a ser um tormento: segundo o boletim epidemiológico mais recente do Ministério da Saúde, referente ao período entre 3 de janeiro e 22 de maio, o Brasil registrou até agora em 2021 um total de 32.978 casos prováveis da infecção.

O que o Ministério da Saúde recomendou na época?

 

Um documento intitulado “Chikungunya: Manejo Clínico”, publicado em 2017 pela Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, traz 14 menções à hidroxicloroquina, a primeira delas na página 32:

“Apesar de inexistência de estudos de comparação de eficácia entre metotrexato e hidroxicloroquina em chikungunya, optamos por recomendar no tratamento desta fase a hidroxicloroquina como primeira escolha, por seus conhecidos efeitos anti-inflamatórios no controle da artrite e da dor musculoesquelética (BEN-ZVI et al., 2012). Também há potencial ação antiviral (THIBERVILLE et al., 2013,), mas principalmente por ser uma droga mais segura quando comparada ao uso de metotrexato a ser prescrita por não especialistas”.

O fármaco não era portanto indicado na fase aguda de chikungunya, que se prolonga até 14 dias após a entrada do vírus no organismo. A sugestão era utiliza-lo nas fases subaguda (de 14 dias a três meses) e crônica (que se arrasta por mais de três meses). Visava-se assim combater não o vírus diretamente, mas suas consequências para o organismo — especialmente aquela dor insuportável.

A reumatologista Claudia Marques, gerente de pesquisa e ensino do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco, se recorda daquelas semanas de 2016 e 2017 e do aumento repentino no número de pacientes com dores, a maioria deles vítima de chikungunya.

Diante de uma situação absolutamente nova, os médicos precisaram apelar para a experiência e o conhecimento acumulados com outras enfermidades. “A classe dos antimaláricos, do qual a cloroquina faz parte, é usada há décadas como tratamento de doenças inflamatórias crônicas, como a artrite reumatoide e o lúpus”, relata.

A médica, que também representa a Sociedade Brasileira de Reumatologia, acrescenta que esse medicamento tem um papel imunomodulador — ou seja, ajuda a controlar o sistema de defesa do nosso corpo.

Nas doenças autoimunes, o sistema imunológico sofre algum desajuste e passa a atacar estruturas do próprio organismo. Na artrite reumatoide, sobra para as articulações. No lúpus, são as juntas, a pele, os rins, o cérebro… Para evitar que as lesões se agravem ainda mais, os especialistas lançam mão das tais drogas imunomoduladoras. Na maioria das vezes, é possível manter o quadro sob controle.

Mas a cloroquina não foi usada indiscriminadamente: do total de acometidos por chikungunya, só 50% evoluem para a fase subaguda, em que as dores articulares são a principal manifestação — o restante se cura e não têm sintomas articulares. E, mesmo dentro do primeiro grupo, o remédio não é prescrito para todo mundo.

Marques explica que, na maioria dos casos, os exames não encontram uma lesão específica ou um motivo claro para explicar os incômodos pelo corpo. O melhor caminho terapêutico a seguir, então, é atividade física, alongamento, recuperação e fisioterapia — e não a cloroquina.

“Mas, em cerca de 5% dos pacientes, o vírus funciona como gatilho para a manifestação de uma doença autoimune e o desenvolvimento de uma condição muito parecida ou igual à artrite reumatoide”, explica. É justamente nessa turma bem específica que a cloroquina pode trazer ganhos, após a avaliação e a prescrição do médico que realiza o acompanhamento.

A cloroquina tem efeito nos vírus?

 

No protocolo do Ministério da Saúde de 2017, chama a atenção o trecho que afirma que “também há potencial ação antiviral” da cloroquina. Então, quer dizer que esse remédio pode atuar contra de doenças causadas por esses agentes infecciosos? Infelizmente, não é bem assim…

Depois de entrar em nosso organismo, vírus como o chikungunya, o zika e o próprio Sars-CoV-2 (o coronavírus responsável pela pandemia atual) precisam para invadir nossas células e dar início à infecção.

“A cloroquina teria a capacidade de atrapalhar esse processo de entrada dos vírus na célula”, detalha a farmacêutica Laura Marise, doutora em biociências e biotecnologia e cofundadora do projeto de divulgação científica Nunca Vi 1 Cientista.

Isso tudo foi verificado nos estudos in vitro, em que cientistas analisam a ação de diferentes substâncias em células isoladas, na bancada dos laboratórios. O problema começa quando essas observações iniciais são submetidas às próximas fases de pesquisa.

Os estudos in vitro não são suficientes para comprovar a eficácia e a segurança de uma droga contra determinada doença. É justamente para confirmar (ou não) esse potencial que os cientistas fazem novos experimentos em cobaias e, posteriormente, passam para os testes clínicos, com seres humanos. A situação da cloroquina enquanto medicamento antiviral começa a se complicar justamente nessas etapas.

Vamos usar a chikungunya como exemplo. “Apesar de ter funcionado em células de laboratório, o medicamento não conseguiu, por exemplo, diminuir a quantidade desse vírus no organismo de macacos”, informa o biofísico e virologista Rômulo Neris, doutorando na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Estudos similares, envolvendo cobaias e voluntários humanos, também atestaram a ineficácia da cloroquina contra a Covid-19. É por isso que ela não integra as diretrizes e as recomendações de tratamento de instituições como a Organização Mundial da Saúde (OMS), os Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos e a Sociedade Brasileira de Infectologia.

Como explicar essa diferença?

 

Para entender por que a cloroquina tem bons resultados in vitro e, depois, acumula resultados decepcionantes conforme evolui nas pesquisas, é importante entender que se tratam de contextos completamente diferentes. Uma determinada substância funcionar em grupo pequeno de células não significa que ela terá o mesmo comportamento dentro de um organismo como o nosso, cheio de variáveis e processos intrincados.

“As culturas de células de laboratório não representam nem de perto a complexidade de nosso corpo. Há muitas vias metabólicas, e não sabemos ao certo se aquela quantidade de remédio que tomamos chegará na concentração adequada aonde ele precisa agir”, destrincha Neris.

Outro ponto importante: alguns agentes infecciosos, como o próprio coronavírus, podem usar caminhos alternativos para invadir a célula que não são afetados pela cloroquina, deixando o caminho livre para o vírus sequestrar nossas células e dar início à infecção.

Mas o que fez então a cloroquina ser testada como um antiviral em quadros como chikungunya e Covid-19? A resposta está numa estratégia muito tradicional na farmacologia: o reposicionamento de drogas.

Em resumo, os cientistas pegam remédios já testados e aprovados para outras doenças e avaliam se eles poderiam funcionar contra novas enfermidades. A meta é pular algumas etapas dos testes clínicos e acelerar a chegada de possíveis tratamentos — algo urgente em epidemias.

Seguindo esse rito, a cloroquina foi testada em diversas pesquisas nos últimos meses, mas seus resultados não convenceram a comunidade científica. Hoje em dia, é consenso entre os especialistas e as instituições mais importantes da área que ela não funciona contra a Covid-19.

Seu uso como preventivo ou tratamento precoce nesse contexto, aliás, pode até prejudicar a saúde, dizem alguns cientistas.

Como a cloroquina tem um efeito imunomodulador, “ela poderia até atrapalhar a atuação de nossas células de defesa nesse momento importante, no estágio inicial da Covid-19”, sugere a farmacêutica. Essa possibilidade, no entanto, ainda precisa ser melhor estudada e confirmada.

Num ambiente tão polarizado, Neris lembra que as orientações de saúde pública deveriam sempre estar alinhadas à ciência.

Em razão das falas da CPI, a BBC News Brasil entrou em contato com as assessorias do senador Luis Carlos Heinze, do Ministério da Saúde e do Exército Brasileiro (por causa das declarações de Mayra Pinheiro e Eduardo Pazuello, respectivamente), mas até o fechamento desta reportagem não havia recebido nenhuma resposta.

Fonte: G1

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