CIVILIZAÇÃO EM DISPUTA: O PAPEL DO DIREITO E DAS HUMANIDADES NA CONSTRUÇÃO DO BRASIL –
Introdução – O termo civilização, em qualquer região do mundo, está intimamente associado ao avanço das instituições jurídicas, à produção cultural e ao desenvolvimento humanístico do indivíduo. No Brasil, um país com uma trajetória complexa e uma diversidade sociocultural, a construção civilizatória tem sido e continua sendo uma luta, marcada por heranças coloniais, exclusões históricas e, simultaneamente, significativos progressos jurídicos e culturais. Este artigo propõe uma análise crítica sobre a formação da civilização brasileira, sublinhando a relevância dos estudos jurídicos e das disciplinas humanas na construção de uma sociedade democrática, diversa e justa. Em contrapartida, ressalta os perigos gerados pela desconsideração do conhecimento humanista e da formação crítica, que contribui para a deterioração das instituições, da cidadania e da coesão social.
- Civilização: um processo incessante e contestado
A civilização não é um estado final e imutável, mas sim uma construção histórica, social e simbólica. É fruto do esforço conjunto de gerações na organização da vida comunitária, na criação de instituições, na promoção da justiça e na formação de um sentido compartilhado de pertencimento.
No Brasil, o processo de civilização é caracterizado por intensas ambivalências. A colonização portuguesa impôs normas jurídicas externas e uma estrutura estatal centralizada, mas também perpetuou desigualdades, como a escravidão e a negação de direitos às comunidades nativas e afrodescendentes. O Código Criminal de 1830, por exemplo, embora tenha sido um marco normativo, perpetuava práticas punitivas seletivas e raciais.
Somente com a Constituição Federal de 1988 o país começou a firmar, de maneira mais evidente, um projeto de civilização baseado nos direitos fundamentais, na dignidade humana e na valorização da diversidade cultural. A denominada “Constituição Cidadã” permanece, até o presente, como o principal símbolo de compromisso com a edificações de uma ordem jurídica democrática.
- O Direito como agente de civilização
O Direito, enquanto sistema normativo, não serve apenas como uma ferramenta de controle social. Ele cataloga valores, organiza o poder, reconhece direitos e define limites à arbitrariedade. Em sociedades democráticas, o Direito é uma ferramenta de pacificação e mudança, atuando como a base da civilização.
Na visão dos direitos — civis, políticos, sociais, econômicos e culturais — emerge a concepção de justiça e humanidade. Deste modo, a formação jurídica não deve se restringir a um mero caráter técnico ou dogmático. É necessário que seja crítica, integrada entre disciplinas e alinhada com os princípios constitucionais, o Estado Democrático de Direito e os direitos humanos. O preparo de juristas cientes de sua função social é essencial para a preservação da ordem civilizatória.
- Cultura e humanidades: a essência da civilização
A cultura representa a dimensão simbólica da civilização. Sem ela, sobraria apenas a concretude das construções, das regras e das instituições. Através da cultura, a sociedade revela seus valores, suas dores, seus sonhos e sua identidade. A música popular brasileira, a obra literária de Machado de Assis, Guimarães Rosa ou Carolina de Jesus, o teatro de Plínio Marcos e a filosofia de Paulo Freire, por exemplo, são cruciais para a representação do Brasil profundo, da resistência e da valorização da dignidade.
As humanidades — como filosofia, história, sociologia, antropologia e artes — oferecem as ferramentas teóricas e metodológicas para entender criticamente a realidade. Elas permitem ao indivíduo desenvolver empatia, reflexão ética, análise de poder, entendimento das desigualdades e busca da justiça. Quando os profissionais do Direito e da administração pública desprezam esses conhecimentos, eles diminuem sua capacidade de perceber os contextos humanos e históricos em que atuam.
- O risco do tecnicismo desumanizador
Nos anos recentes, tem-se observado um crescimento do tecnicismo desumanizador e do pragmatismo político que ignora o saber das ciências humanas. Esse fenômeno não resulta apenas da falta de conhecimento, mas de uma estratégia de poder que busca desmantelar a consciência crítica e transformar a educação em formação de mão de obra obediente.
O Direito, quando aplicado sem valores, pode tornar-se um instrumento de injustiça. A história do Brasil e do mundo está cheia de exemplos onde leis foram utilizadas para institucionalizar a opressão — como nas normas raciais do apartheid ou na legalização da tortura em regimes autoritários. Portanto, é fundamental que o Direito esteja fundamentado em princípios éticos, filosóficos e históricos.
Desconsiderar isso é desproteger a população contra os abusos de autoridade, enfraquecer o ideal de justiça e, acima de tudo, promover uma sociedade fria, fragmentada e autoritária.
- Formação jurídica e compromisso com a democracia
A educação legal deve capacitar não apenas advogados, juízes ou promotores, mas também cidadãos que se comprometam com a legalidade, os direitos humanos e a defesa da ordem democrática. O aprendizado sobre o Direito precisa estar associado à filosofia jurídica, à sociologia do direito, à história das instituições, à psicologia social e à análise econômica das leis, para que os profissionais entendam como suas escolhas afetam a vida das pessoas.
O jurista contemporâneo deve atuar como um intelectual público, por meio do entendimento de que o Direito reflete a sociedade, e não deve ser visto como um objetivo isolado. A falta de uma formação crítica permite a continuidade de injustiças estruturais e a trivialização da norma jurídica.
Conclusão: civilização ou barbárie?:
A questão que deve guiar nossas escolhas políticas, jurídicas e educacionais é: queremos progredir como civilização ou voltar à barbárie? A resposta revela-se na maneira como valorizamos a cultura, a educação e os direitos humanos. Uma sociedade que não dá importância aos estudos jurídicos e humanísticos está se encaminhando para a sua própria destruição, pois enfraquece as bases da convivência civilizada.
Dessa forma, é responsabilidade das instituições de ensino, dos profissionais da área jurídica, dos legisladores e da sociedade civil organizada, estimular uma nova valorização do conhecimento crítico, ético e diversificado. Somente assim conseguimos estabelecer um Brasil mais justo, democrático e verdadeiramente civilizado.
Raimundo Mendes Alves – Advogado e Vereador
