CARTA ESQUECIDA NA GAVETA DA MEMÓRIA – Flávia Arruda
Natal (RN), num desses dias de um mês quente, de um ano ímpar.
Querido,
Relutei em escrever-lhe estas mal traçadas linhas, mas não me contive em vir aqui escrever sobre o seu silêncio, sobre o quanto ele ensurdece minha razão – razão pela qual faz com que eu me sinta, algumas vezes, um trapo. Sim, declaro que preferiria não me importar com as ausências dos manifestos e vestir-me de orgulho, no entanto, lembro-me do quanto o orgulho me faz mal. Com isto, tento não permitir que sentimentos ruins me tomem, me machuquem, me anulem e, talvez por isto, tentei me embrenhar por lugares onde eu não pudesse lhe enxergasse, sem muito sucesso.
Tentei desviar meus pensamentos, adormecer sentimentos, encaixotar saudades embrulhando-as com folhas isolantes. Só gerei retrabalho. Cada vez que tentei apagar, matar você da memória, mais viva a memória se tornava. Não posso negar os sentimentos que me invadem cada vez que procuro rumo em sua direção e sinto a frieza – isso, quando você dar-se o trabalho de responder. Sinto a frieza afiando a lamina que perfura sem compaixão o coração numa fina dor, dolorida, que traz consigo a certeza de que nada restou. Deveria pedir-lhe desculpas? Não tenho certeza.
Ainda acordo nas madrugadas, aqui, agora, ao meu lado, está vazio, o edredom já não me acolhe mais e as noites já não tem mais sois, elas teimam em escurecer como os dias que foram engolidos pelo furacão negro mirando nas incertezas, que destrói sonhos, afasta desejos e emudece a linguagem do amor. Ainda procuro nessas noites aquelas em que aqui eu encontrava abraços apertados, beijos molhados, laços de pernas e sonhos encantados. Talho na cabeceira de madeira riscos de cada noite sem ter você aqui, lanço pela janela entreaberta o mensageiro dos sonhos para te buscar entre as nuvens de esperança, antes que elas se dissipem e apaguem os desenhos rabiscados com o lápis da paixão.
Parece-me inútil voar pelos espaços vazios que você deixou, procuro seu calor, fecho os olhos e por breves instantes o sinto ao meu lado, as lágrimas revelam minha gratidão em ter tido você aqui, o que me faz, inevitavelmente, perceber a ausência do amor inteiro, completo e sem reservas, que me acompanhou por um bom e inesquecível tempo. Sinto saudades, sinto falta.
Meu querido cúmplice e grande amor, aqui chove. Deitada em minha cama, ouço as notas que ecoam das águas que caem sobre minha janela: elas cantam a melodia das minhas madrugadas frias. Trazem consigo as lembranças de quando aqui, nesta mesma cama, nos uníamos em sonhos, numa só alma, nos aquecendo, nos amando.
Hoje não há mais o edredom do lado esquerdo da cama, não há amparo quando sonho os pesadelos que me fazem rolar de um lado para outro da cama. De certo, levará algum tempo até que a chuva passe, lave a minha dor e deixe que a madrugada adormeça junto com os sonhos não mais sonhados.
Ainda vai levar algum tempo até que eu consiga me desfazer das ruínas que se amontoam sobre o templo de adoração daquelas madrugadas que me alimentavam de sonhos e vontades e me fortaleciam com o cheiro de terra molhada, com a esperança do reencontro, dos toques, do amor que floresceria nos dias de sol.
Com carinho,
Eu.
Flávia Arruda – Pedagoga e escritora, autora do livro As esquinas da minha existência, [email protected]
