O menino George, de 10 anos, evitava fazer barulho ao revirar o lixo e escolher os materiais recicláveis para vender. Era a forma de ele ajudar nas despesas de casa, no Alto do Morro da Conceição, área periférica na zona Norte do Recife. Vinte e sete anos depois, George José Mendonça, nome de batismo do percussionista Bob Brown, transformou os barulhos da vida em música. 

As garrafas de plástico, as caixas de madeira ou as latas vazias, que fizeram parte do seu passado, viraram instrumentos do artista.  Segundo ele, a transformação dos sons de sua rotina ocorreu pelo caminho e inspiração de um vizinho no bairro, o músico Lucas dos Prazeres. Ele organiza projetos sociais na comunidade em que nasceu.

Quando George era criança, Lucas o buscou em casa para apresentar um projeto comunitário, o Centro Maria da Conceição, que mudaria para sempre os seus sentidos. A avó de Lucas doou um terreno que se transformaria no centro comunitário, hoje com mais de quatro décadas.

“Lucas segurava a mão da gente. Pegava as garrafas e enchia de areia e de pedrinhas. Depois, vedava, pintava e fazia isso aquilo virar um instrumento”, relembra.

Em 2025, como tem ocorrido todos os anos, Bob vai até o Marco Zero da cidade para assistir ao ídolo Lucas, na 22ª apresentação do espetáculo Baile do Menino Deus, auto de Natal com personagens brasileiros. “O que me impressiona no Lucas é o amor que ele tem pela música e pela dedicação por quem precisa”.  A peça fará mais duas apresentações, nos dias 24 e 25.

No espetáculo de natal deste ano, Lucas dos Prazeres, de 41 anos, interpreta um anjo. “É o anjo que traz o guiso nos pés e ele vem flutuando na batida do cavalo marinho”, afirma. Ele, que é filho de artistas que se conheceram no Balé Popular do Recife, explica que, aos três anos de idade, já sapateava com o coco de roda. Ele entende que as crianças que nascem inspiradas pelas tradições artísticas de uma comunidade recebem formação de cidadania, senso crítico, e olhar diferente para o mundo.

“Essa é a diferença de quem nasce dentro de um território quilombola, como foi o meu caso, daqui no Quilombo dos Prazeres, no Morro da Conceição”, afirma. O que ele vivencia no Baile do Menino Deus, no ciclo natalino, faz lembrar as brincadeiras dentro dos terreiros. “Aqui é muito forte a brincadeira do cavalo marinho. E é com essa linguagem que eu me apresento no Baile do Menino Deus, trazendo o cavalo marinho e o coco de roda”.

O artista explica que o diretor do espetáculo, Ronaldo Correia de Brito, deu liberdade para que ele colocasse guizos nos pés e trabalhasse com o corpo do cavalo marinho, e tamanco do coco de roda para fazer o sapateado. Fora do palco, Lucas diz que os projetos comunitários que ele coordena, o ponto de cultura Negras Raízes e a Orquestra dos Prazeres, não têm a pretensão de formar músicos, mas cidadãos.

Primeiras ousadias

No ponto cultural, Lucas ensina crianças e adolescentes as primeiras ousadias da percussão. Na orquestra, ele promove apresentações. “A minha concepção de criar essa orquestra era justamente porque nas escolas de música não ensinam a diversidade do Nordeste”. Mais de 300 jovens já passaram pela escola.

Segundo Lucas testemunha, a orquestra-escola de percussão tem ajudado os músicos a se inserir no mercado de trabalho, como é o caso de Bob Brown, que hoje vive com a agenda lotada. O discípulo Bob já tocou com músicos como Naná Vasconcelos (1944 – 2016), Elba Ramalho, Lenine e Lula Queiroga.

Aliás, uma visita de Naná Vasconcelos ao morro foi fundamental para a visibilidade dos projetos sociais. “Ele começou a frequentar o nosso território, o nosso quilombo e chegou num dado momento que ele me convidou a fazer parte do trabalho dele. Trabalhamos 12 anos juntos e conheci o mundo inteiro”.

A doação da avó de Lucas, antes de morrer, de terreno para os vizinhos, viabilizou a escola comunitária. “Com nossa própria docência e metodologia, que é a aprendizagem pela prática cultural. Por isso que eu nunca saí da minha comunidade”, conta o artista.

Break na quebrada

Outro artista pernambucano no palco neste Natal e que não pretende sair da própria comunidade é o músico Ellan Barreto, de 32 anos, conhecido como Okado do Canal. Nascido e criado na Favela do Canal, no bairro do Arruda. Criou projetos artísticos voltados para a sua “quebrada”, o Lado Beco, com atividades de hip hop na área da casa do músico.

O break virou a melhor brincadeira para a estudante Wilyane, de 11 anos de idade. O pai dela, Wiliams Vicente, de 40 anos, que trabalha como manobrista no Recife, fica orgulhoso da menina encantada pelas artes. “Ela ama a música e eu acho que pode fazer muito bem para ela”, diz o pai. Na casa deles, ninguém se importa de acordar cedinho no sábado para ir até a casa de Okado ter as aulas.

“Eu me sinto uma família com minhas amigas. O Okado é muito divertido. Quero ir vê-lo no palco pela primeira vez neste ano”, diz com sorriso no rosto a estudante, que aprendeu os passos do freeze e do top rock. A menina já tem participado de batalhas de break com crianças de outras regiões periféricas. “Se eu estou feliz, meu pai e o Okado ficam também”.

Nessas festas de final de ano, é comum a comunidade se encontrar na rua. O rapper e educador comunitário contextualiza que, na região, é comum as pessoas também se visitarem o tempo inteiro.  “Eu gosto do espírito de fraternidade de minha comunidade”, afirma Okado. Os vizinhos também tentam se organizar para prestigiar o artista no auto de natal no centro da cidade. Afinal, a comunidade é agradecida pelo projeto.

Além de música, o rapaz tem tentado conversar sobre meio ambiente com a vizinhança, ao ajudar na consciência de descarte e aproveitamento de materiais.

“A gente está montando um espetáculo com os alunos de break. E o figurino está sendo montado a partir de materiais recicláveis”, explica Okado.

Os materiais recicláveis para o figurino e os cenários são levados pelas próprias crianças. A iniciativa tem dado resultado. Wilyane prefere as aulas de artes na escola, mas está mais atenta ao cenário em que mora. Okado vê nas crianças inspiração ao lembrar da própria infãncia.  “O Centro Cultural do Beco surgiu desse meu interesse desde criança de ter uma academia de dança para poder dar aulas”, afirmou.

Um dia Okado também foi beneficiado por outros projetos na comunidade, como o Grupo Pé no Chão e o Instituto Vida. Foi por esse caminho que participou do coletivo de audiovisual. chamado Favela News para veicular materiais do seu dia a dia. Desde 2018, Okado também começou a promover oficinas de roteiro, câmera, edição, cenografia, figurino, e até maquiagem.

Além disso, toda vez que é chamado para dar palestras para explicar sobre como o menino da favela se tornou músico e dançarino profissional, gosta de falar sobre a necessidade de fazer justiça aos ancestrais e evitar o apagamento da história.

“Muitas vezes, as pessoas não sabem o nome das suas avós e das suas bisavós. Não pode. Onde eu vou levo a memória delas comigo”.

Palhaçada séria

A origem familiar inspira também o ator Arilson Lopes, de 51 anos, e que interpreta o personagem Mateus no auto de Natal. No palco, ele busca onde nasceu o menino Jesus. Os pais do ator vivem em Serra Talhada e costumam viajar ao Recife para vê-lo no palco. Outro trabalho de Lopes é menos visto. Ele é um dos palhaços do grupo Doutores da Alegria, em Pernambuco.

Tanto em um trabalho como no outro, o ator fica encantado ao observar as crianças cantando junto.

“O Natal, pra mim agora, é sinônimo de Baile do Menino Deus. Há 22 anos, eu não passo Natal com a minha família”.

Arilson é o coordenador artístico do Doutores da Alegria. “Nós somos palhaços e trabalhamos em cinco hospitais públicos”. Há sempre uma dupla de palhaços que se dizem besteirologistas. Estão sempre prontos para “curar” riso frouxo, pulga atrás da orelha e caspa no joelho. Ele trabalhou em dupla de palhaços até 2015. Desde então, passou a dirigir as atividades que levam novo ânimo tanto para as crianças hospitalizadas como para as famílias delas.

“O palhaço no hospital me proporcionou quebrar a quarta parede do teatro, por exemplo. O palhaço se relaciona diretamente com o seu público”, explica. As crianças têm diferentes enfermidades e isso exige atenção dos artistas. “Tem que estar com a antena ligada para perceber tudo o que está acontecendo. para brincar e me comunicar com crianças diversas também”.

Não se trata de um trabalho simples, como explica. O ator diz que é um trabalho que envolve preparação para as emoções que surgem a cada “cena”. “Quando uma criança volta para a sua casa, a felicidade fica no rosto de toda a equipe”.

Soltar a voz

A felicidade artística faz parte do dia a dia da cantora Sue Araújo também, solista do espetáculo há 12 anos. Além do trabalho de palco, ela tem projeto em uma escola pública na comunidade da Mustardinha, área periférica do Recife.

Sue, que começou no gospel e hoje mergulha na cultura regional, também nasceu em uma comunidade desassistida em Jaboatão Velho. Na Mustardinha, ela enxerga o próprio passado e tenta tornar o quinto ano do ensino fundamental mais interessante com música durante as aulas.

“Eu fui a primeira mulher na minha família a se graduar.  É o que eu quero para os meus alunos também. Que eles brilhem”, diz a cantora.

 

 

 

 

 

Fonte: Agência Brasil

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