DOIS ASSUNTOS – 

O teatro brasileiro é mesmo uma usina de criatividade e recursos ficcionais surpreendentes. Tem de tudo. Realismo social, realismo fantástico, histórico, vazados em linguagem que transita do sarcasmo ao sacana. Por exemplo, anos atrás, Natal assistiu a estréia da peça “Monólogos da Vagina” que foi sucesso de bilheteria em todo o Brasil. Se assim não fosse o país seria uma pátria de boiolas. Na minha ignorância teatral não sabia que elas falam. Lembro que, na ocasião, procurei ouvir especialistas e críticos sobre os mistérios das cavidades abissais femininas. Pesquisadores e práticos que pudessem questionar o fastidioso monólogo em diálogo franco e direto. Bem sei, que peças teatrais, desde o tempo do velho bardo William Shakespeare tem audácias e sutilezas verbais inusitadas, muito mais do que sonham as nossas vãs penetrações temáticas. E eu pensava que as vaginas eram como as rosas de Cartola que não falam jamais, nem perdem o viço. Disse, na ocasião, que, do jeito que vai, o falo e o cedenho irão esperar a vez de serem reconhecidos pela arte teatral e entrarem em cena.

Todavia a minha expectativa não durou muito. A temporada chegou a Natal, com desembarque no teatro Alberto Maranhão, na Ribeira velha de guerra, com a peça de Carlos Eduardo Novaes “Diálogo dos Pênis” para a alegria da galera que aprecia equipamentos de fornicação. A peça se propõe a desnudar o lado oculto do homem. Confidências nada mais. Aqueles momentos confessionais de utilização e método de abordagem com o dúctil instrumento oposto. Abre o verbo e a braguilha para refletirem sobre o corpo feminino no embate e debate eterno com a mulher, conflito, alias, hoje, tão consensual e menos litigioso.

A frase do poeta e escritor português Fernando Pessoa foi invertida: “A vida é breve e a arte é longa”. Leia-se que a arte não é mais longa. A arte como o sexo, no dizer de Madonna “é esporte”. Uma pelada qualquer banalizada, vulgarizada por qualquer autor teatral inteligente que quer ganhar dinheiro. A pergunta é: quem lotou mais o teatro “O Monólogo da Vagina” ou o “O Diálogo dos Pênis”.  Aí dá para aferir bem o moral e a moral da cidade. Até por elipse. Mas, quando chegará a terrinha o “Monólogo do Frinfa”, porque, na verdade é o único mesmo que emite uma linguagem universal: o flato.

Por outro lado, a vida é uma rotina. Frase comum, chula, mas verdadeira. Como pôde um espirro noturno ingressar na monotonia dos meus hábitos? Ora, pela força da repetição. De um apartamento, do bloco de três andares, ao lado de minha casa, ressoa e assoa sonoro um espirro soturno, notívago, após as nove da noite que me arremete as madrugadas silenciosas de Macaíba. Naquele tempo, a cidade era uma aldeia globalizada. Nos quintais os galos se repetiam brincando de código morse. Nas ruas a guarda noturna soprava apitos, distintos e indistintos. Aqui, o espirro do meu vizinho vem do alto. Desce e entra em minha casa como um som costumeiro da TV, do rádio, da descarga ou do chuveiro.

Quantas vezes não me quedei silencioso, refletindo aquela contração súbita e cronometrada dos músculos expiratórios? Do meu quarto, fito, vez em quando, a janela acesa e misteriosa do meu vizinho. E me questiono com a exatidão repetitiva do ar expulso pela boca e pelo nariz que não me parece gripal, talvez alérgico, talvez ritual de arremesso de alguma olimpíada esquisita do fluxo e refluxo da noite.

Não conheço até hoje o homem do espirro. Seria gordo, magro, alto ou baixo? Não sei. Algumas vezes, procurei descobrir na saída matinal para o trabalho ou no retorno, à noitinha. Tenho suspeitos. A ninguém indaguei sobre a investigação. Poderiam me achar bobo ou intrometido. “Ora, querer saber quem espirra no bloco”, talvez pudessem comentar.

São 21:45h. Ouvi, há pouco, o último atchim. Explosivo, arrastado como se quisesse absorver o que expeliu. Parece que sente um gozo inexprimível. Um alívio nas mucosas ensandecidas  repentinamente para deleite de uma platéia invisível mas participante. Na verdade, como acontece todas as noites, aquele fora a expiração final. O sossego voltou a reinar. Ainda espiei a sua janela. A luz se apagara. O repouso do dragão havia começado. Terminei essas linhas  pensando que amanhã a rotina voltará.

Valério Mesquita – Escritor, membro da ANL e do IHGRN– Mesquita.valerio@gmail.com

As opiniões contidas nos artigos/crônicas são de responsabilidade dos colaboradores
Ponto de Vista

Recent Posts

COTAÇÕES DO DIA

DÓLAR COMERCIAL: R$ 5,1130 DÓLAR TURISMO: R$ 5,2810 EURO: R$ 5,5570 LIBRA: R$ 6,4920 PESO…

1 dia ago

Órgãos não têm como chegar ao RS e até 2,7 mil pessoas podem ficar sem transplantes

As inundações que atingiram o Rio Grande do Sul nas últimas três semanas tiraram, temporariamente, o…

1 dia ago

Caixa começa a pagar Bolsa Família de maio

A Caixa Econômica Federal começa a pagar a parcela de maio do novo Bolsa Família.…

1 dia ago

Brasil comemora retirada de Cuba da lista dos EUA sobre terrorismo

O Ministério das Relações Exteriores (MRE) do Brasil comemorou, em nota publicada nessa quinta-feira (16),…

1 dia ago

Taxa de alfabetização chega a 93% da população brasileira, revela IBGE

No Brasil, das 163 milhões de pessoas com idade igual ou superior a 15 anos,…

1 dia ago

Dupla é flagrada fazendo manobras arriscadas com quadriciclo na BR-101

Duas pessoas foram flagradas fazendo manobras arriscadas com um quadriciclo na BR-101, na altura de…

1 dia ago

This website uses cookies.