DO TEMPO EM QUE EU AMAVA BABY DIVINE –
New York , 28 de Outubro de 1994
Meu querido Zedelfino
Quando eu estava convencida de que tudo na vida tem dois lados, a Sonny e a Philips inventaram o CD. Sim, já se vão alguns anos, mas o meu baque foi tão grande que passei dez meses acompanhada por um psiquiatra. Como ainda não existiam os florais de Beethoven, fui tratada à base de calda de cana com pão doce e muito papo.
O conhecimento de coisas sobre a Medicina desempenha um fascínio entre nós, as vítimas, por razões que vão desde o medo até o torpor exercido por aquelas palavras que só o diabo sabe onde vocês encontram, mas que funcionam, eis o que importa. Em quatro meses aumentei quinze quilos, mas em compensação arranjei um noivo do Banco do Brasil que eu amava, apesar da minha família ter sonhado com um conde de Veneza ou um ladrão de Chicago. Hoje sinto-me bem melhor ou pelo menos controlo-me pra não causar constrangimento em reuniões sociais.
Adorei ver os seios da Gal em público, feios e flácidos. Mas verdade se diga, aquilo é que é uma mulher de peito. Verdade, também, que o organismo é uma fonte inesgotável de ternura e formas geométricas encantadoras, quantificada pela Engenharia, que nos dá pontes, prédios, barragens. E cantos de paredes. Afinal onde melhor choraríamos as nossas desgraças?
São quatro da manhã e parece que todos aqui nos Estados Unidos dormem. O frio e o silêncio despertam em nós a vontade de sexo, drogas e tapioca com peixe frito. Controlo os instintos e substituo tudo isso por um chocolate, uma Dore-Cola e um cigarro Continental sem filtro. Enquanto fumo, observo a janela. Ruas propícias ao assassinato de nordestinos que atrasaram o desenvolvimento dos nazistas do sul. No juízo final, Deus há de separar a turma de Ipanema da malta que canta Assum Preto.
A duas quadras daqui, graças a Deus de passagem, está uma brasileira, a Eleonora, vem da Califórnia e comenta-se na manicure que dormiu com o Clinton Eastwood. Não sei se morro de inveja ou se minto pra minhas amigas dizendo que não me importo. Não sei, tudo irá depender da reação do meu espírito quando chegar no barzinho da esquina. No apartamento de cima o tenor Silvério dos Reis, um mossoroense simpático, acorda cedo e canta bem alto umas árias de Villa-Lobos. Ao longe um avião, mansamente, cruza os céus ao som de Bye, Bye, Blackbird. A deduzir pela beleza da música, não transporta políticos nem empresários. Inconscientemente, minha consciência pergunta por que razão vem à inconsciência sempre e somente essas duas criações da natureza.
Transtornada e em pose de contrição, choro como quem perdeu aquele pênalti na prorrogação da última partida da Copa. De repente, me lembro daquele livro de poemas que você me enviou. Daquele cara que teve tuberculose a vida toda e, de pneumotórax em pneumotórax, não morreu dela: “Eu sei que a gente se acostuma. Mas não deveria. Eu sei, eu deveria não me acostumar mais … Por isso lembrei de você, e gastei um pouquinho do meu tempo pra dizer que pensei em você, que gosto muito de você, pra não me acostumar mais com esse vazio da vida..”
De resto, meu querido, agradáveis incidentes, namoro um velhinho alemão que tem orgasmos múltiplos, mas, às vezes, cai em dízimas periódicas. Avise pro Alex Nascimento que se ainda não conseguiu deixar de fumar, tente Prozac com mastruz. Agora vou dormir. Vocês tratem de trabalhar. Só assim transformarão o Brasil no que ele nunca há de ser. Ligue o som, ouça Billie Holiday , quatro pedras de gelo , e dê um beijo na tua mulher por mim.
Toda sua,
Baby Divine
José Delfino – Médico, poeta e escritor
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