O TEATRO DA VERDADE –

No “teatro” do direito, costumamos lidar – manipulando-a em altíssimo grau, reconheço – com a verdade. Fala-se de verdade real e formal, de fatos, de verossimilhança etc., numa mistura infinita – e quase sempre imprecisa – de termos e conceitos.

Mas o que é essa tal “verdade”?

Em João 14:6, Jesus disse: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai, a não ser por mim”. Mas muitos não creem nisso, até porque muitos, na nossa aldeia e mundo afora, não são cristãos. Na ciência, os neopositivistas lógicos e o Círculo de Viena, sob a coordenação de Moritz Schlick (1882-1936), até defenderam o princípio da verificação experimental, mas sua insustentabilidade prática foi reconhecida, em prol de versões mais “suaves”, como o critério da falseabilidade de Karl Popper (1902-1994). E, claro, em tempos de pandemia, temos falado muito do consenso científico, que, embora não seja um critério ou método em si, nos dá quase sempre os paradigmas de estilo. Mas mesmo estes, de vez em quando, são quebrados, já nos lembrava Thomas Kuhn (1902-1996) em sua “A estrutura das revoluções científicas” (1962). E por aí vai a nossa Epoché.

Mas não só o direito, a teologia, a filosofia e a ciência andam às voltas com o problema da verdade. A literatura também. A vida nossa de cada dia idem. E um dos literatos que mais fustigou a verdade, questionando as “aparências” da vida, foi o italiano Luigi Pirandello (1867-1936).

Pirandello nasceu em Agrigento, Sicília. Adolescente, foi morar com a família na capital regional Palermo. Ali iniciou seus estudos universitários. Irrequieto, abandonou a terra para estudar em Roma e, depois, em Berlim (onde se diplomou). Retornou a Roma e aí começou de vero a sua história nas letras. Foi professor de literatura, jornalista/articulista (no badalado Corriere della sera), crítico literário, poeta, romancista e, sobretudo, embora uma atividade já tardia na sua carreira, dramaturgo. O maior dramaturgo italiano de todos os tempos. Um dos maiores da Terra Redonda. Seus principais romances são “O falecido Matias Pascal” (“Il fu Mattia Pascal”, 1904) e “Um, nenhum e cem mil” (“Uno, nessuno e centomila”, 1926). Entre as suas dezenas de obras teatrais, emprenhadas de muito humor, podemos citar “Assim é, se lhe parece” (“Così è – se vi pare”, 1917), a jurídica “A patente” (“La patente”, 1918), a trilogia “Seis personagens à procura de um autor” (“Sei personaggi in cerca d’autore”, 1921), “Cada um a seu modo” (“Ciascuno a suo modo”, 1924) e “Esta noite se representa de improviso” (“Questa sera si recita a soggetto”, 1930), “Henrique IV” (“Enrico IV”, 1922) e por aí vai. Dizem que ele simpatizou com o fascismo no fim da vida (ninguém é perfeito). Terminou ganhando o Nobel de Literatura em 1934. Portanto, faleceu mais do que em glória.

Uma questão que sempre se pôs em debate é se Pirandello era de fato um filósofo ou um artista. Aliás, são famosas as suas polêmicas com Benedetto Croce (1866-1952), o maior filósofo italiano de seu tempo. Gosto da ideia de que Pirandello era um filósofo com a mão/pena de um artista. Bendito seja! E, como consta da minha versão de “Così è (se vi pare)” (uma edição “classici italiani per stranieri” da Bonanni Editore, 1995): “uma ideia de fundo atravessa toda a vasta produção de Pirandello: o homem veste uma máscara, com a qual acaba se identificando, de modo que ninguém sabe quem ele realmente é, e somente em momentos de particular sofrimento pode-se ter vislumbres sobre sua verdadeira e profunda identidade”.

Recordo haver assistido à “Seis personagens à procura de um autor” em uma pequena casa de espetáculos de Cambridge, Inglaterra. E aquele teatro dentro do teatro, aquela ilusão dentro da ilusão quase ao infinito, me deixou deveras confuso, mas também encantado.

Mas é a ideia central de “Così è (se vi pare)” que desejo deixar aqui como arremate desta crônica sobre teatro, direito e realidade: a da inutilidade de se buscar a verdade na farsa da vida. Não seria essa inutilidade ainda mais patente no “teatro” do direito? Onde topamos com “farsas” filosóficas e jurídicas, de mil e uma personagens e seus palavreados bonitos, quase às escâncaras…

 

 

 

 

 

 

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores
Ponto de Vista

Recent Posts

COTAÇÕES DO DIA

DÓLAR COMERCIAL: R$ 5,3730 DÓLAR TURISMO: R$ 5,5580 EURO: R$ 6,259 LIBRA: R$ 7,1290 PESO…

16 horas ago

Netflix fecha acordo para compra da Warner Bros. Discovery por US$ 72 bilhões

A Netflix anunciou na manhã desta sexta-feira (5) acordo de compra dos estúdios de TV e cinema…

16 horas ago

Suspeito de participar da morte de menina de 7 anos na Grande Natal é preso

A Polícia Civil prendeu nessa quarta-feira (3), em Natal, um dos suspeitos de partipação na morte da…

16 horas ago

Dino marca para fevereiro de 2026 julgamento do caso Marielle na 1ª Turma do STF

O ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu nesta sexta-feira (5) marcar para os…

16 horas ago

Investigado por contrabando é preso ao ser flagrado pela PF com material de abuso sexual infantojuvenil

A Polícia Federal prendeu um investigado por contrabando de cigarros em flagrante após localizar material configurado…

16 horas ago

Justiça manda Airbnb ressarcir despesas médicas de cliente que ficou paraplégica após acidente em hospedagem

A Justiça do Distrito Federal determinou que o Airbnb pague, na íntegra, os custos de uma…

16 horas ago

This website uses cookies.