IMORTAL OU NÃO –

A mais ilustre das academias de letras é, certamente, a Académie Française, fundada pelo Cardeal Richelieu (1582-1642), em 1635, no reinado de Luís XIII (1601-1643). Como unidade administrativa, ela hoje faz parte do Institut de France, que engloba ainda outras quatro academias: Académie des inscriptions et belles-lettres, Académie des sciences, Académie des beaux-arts e Académie des sciences morales et politiques. O Institut de France e a Académie Française ficam no número 23 do Quai de Conti, em frente à Pont des Arts, à margem esquerda do Sena, em Paris. Estando por lá, vale a pena uma olhadela. Com certeza.

A Académie Française tem várias funções, essencialmente relacionadas às letras e à cultura, claro. Uma delas é disciplinar o uso da língua francesa. Sua gramática, seu vocabulário, entre outras coisas. E ela publica um dicionário, o “Dictionnaire de l’Académie française”, que já vai na nona edição. Os quarenta membros – que são eleitos pelos pares e aprovados pelo protetor da Academia, outrora o Rei, hoje o Presidente da República –, são ditos “imortais”, apenas porque são frequentemente relembrados, o sucessor sempre homenageando o seu antecessor. Eles morrem, inclusive de Covid-19, como no caso de Valéry Giscard d’Estaing (1926-2020). Bom, já multissecular, a Académie Française se fez um monumento francês, por assim dizer.

Invejada, a Académie Française foi o modelo para a Academia Brasileira de Letras. Esta, de 1897, também composta por quarenta “imortais”, teve como idealizador Lúcio de Mendonça (1854-1909) e como primeiro presidente Machado de Assis (1839-1908). Entre seus fundadores, tinha gente como Joaquim Nabuco (1849-1910) e Ruy Barbosa (1849-1923), apenas para citar dois juristas e diplomatas de minha predileção. Seguindo seu lema, “Ad immortalitatem” (“Rumo à imortalidade”), ainda mantém sede no palacete Petit Trianon, no combalido Rio de Janeiro. Não sendo imortal (de vero), é só ter cuidado ao vaguear por lá.

A coisa foi se replicando. A Academia Pernambucana de Letras, de 1901, é uma das mais antigas do país. Carneiro Vilela (1843-1913), o autor de “A Emparedada da Rua Nova” (1913), presidiu a sessão inaugural. Curiosamente, Nilo Pereira (1909-1992), antecessor na cadeira para a qual fui eleito na Academia Norte-Rio-Grandense, foi membro ilustre da casa pernambucana. A sede é na famosa Av. Rui Barbosa, pertinho de onde habito. Ótimo programa de tarde!

E a Academia Norte-Rio-Grandense de Letras? Segundo registra Leide Câmara, em “Memória Acadêmica” (Editora IFRN, 2017), a congênere potiguar “é voltada para a luz. Seu lema, a divisa ‘Ad lecem versus’, é de autoria do Padre Luís Gonzaga do Monte. Fundada em 1936, por Luís da Câmara Cascudo, foi fecundada pelo entusiasmo do mestre e é obra de arquitetura do espírito, moldada por ele. (…). Seu primeiro presidente foi Henrique Castriciano”. E, diferentemente das matrizes, que careceram de patronas ou acadêmicas na fundação, a Academia do RN “contou, desde sua inauguração, com a participação feminina. Três mulheres no patronato, Nísia Floresta, Isabel Gondim e Auta de Souza, e duas acadêmicas, as poetas Palmira e Carolina Wanderley”. Palmas para a nossa terrinha de imortal vanguarda!

É verdade, como diz Jean Le Nouvel, em “Le Paris des écrivains” (Éditons Alexandrines, 2012), sobre a Académie Française, que alguns gigantes desdenharam a imortalidade: “Flaubert, em Le Dictionnaire des idées reçues, indicou que seria ‘a difamação mais difícil de se apagar, se é que seria possível’. (…). Bernanos afirmou que não se pode dizer coisas importantes ‘em roupa de carnaval’ e concluiu: ‘quando eu não tiver mais que um par de nádegas para pensar, eu irei me assentar à Academia”. É um pouco daquilo que chamamos de contracultura, de rejeição dos valores da tradição, na linha do “engajamento” de Jean-Paul Sartre (1905-1980) e, sobretudo, da difusão dos ideários da geração Beat e do movimento Hippie. Ultimamente, virou meio moda. Todavia, isso não é coisa para qualquer um. Para fazer contracultura, é preciso ter feito cultura antes. Picasso (1881-1993), para pintar como pintou, desenhou antes como Rafael (1483-1520). Se não, soa como incapacidade, inveja ou mesmo recalque, como se a vida tivesse dado menos do que se acredita merecer. E essa ideia não é nem minha, mas eu a apreendi faz tempo.

Até porque Picassos, vagando entre nós, desconheço exista algum. Imortais ou não.

 

 

 

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP

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