DAS BRUMAS DO PASSADO –
Um dia, o maestro Mário Tavares (1928 – 2003) convidou-me para escrever longo texto sobre os principais fatos históricos de Natal, como motivação das comemorações aos 400 Anos da nossa cidade capital.
O potiguar compositor e maestro, diretor do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, Mário Tavares, foi um dos principais intérpretes da obra de Villa Lobos. Costumava afirmar que não existiam fronteiras entre os sons clássicos e os populares: “música boa é música bem-feita”, dizia.
Ciente de que sem cultivarmos o passado, não haverá futuro, mergulhei numa multidão de personalidades e heróis, de nomes e feitos esquecidos, registrando os valores do passado, cujas raízes estão solidamente abastecidas por historiadores e pela memória do povo. O texto foi lido no concerto da fabulosa Orquestra Sinfônica da UFRN, na noite do dia 21 de dezembro de 1999, no Teatro Alberto Maranhão e, no dia seguinte, na Catedral de Natal.
A riqueza do passado é imortal. O legado dos grandes pensadores e das notáveis figuras humanas deve ser reconhecido. É a principal e legítima riqueza com a qual as novas gerações deverão estar sintonizadas, a fim de que o futuro não deixe de ser inspirado nos princípios morais e éticos que somente podem ser cultivados pela fé humanista. Emocionado, lembrei-me de Manuel Dantas adivinhando Natal e o mundo do futuro. Em 1909, anteviu a cidade hoje, a televisão, os Estados Unidos da Europa e o Eurotúnel.
Destaquei também os presidentes Franklin D. Roosevelt e Getúlio Vargas rindo e se abraçando na visita para acostumar a cidade com o ronco de aviões, sirenes e holofotes na Segunda Guerra Mundial. Blackout para um possível bombardeio. Jamais me esqueceria de Câmara Cascudo criando a Academia Norte-rio-grandense de Letras e desejando que “Sic itur ad astra”. Ou seja: que assim se chegue aos astros.
No chão da eternidade, o tempo sem calendário. Somos famintos, antropófagos. Potiguares (comedores de camarão), ainda chamados de papa-jerimuns. Clara Camarão, mulher do Governador dos Índios, Potiguaçu, o Camarão Grande, afia a ponta da flecha para o peito de um holandês. De passagem encantada, Frans Post e Jorge Marc ‘grave exibem desenhos e cartografias na Fortaleza dos Reis, mudada a Castelo de Keulen.
Às margens do Potengi, normandos e bretões, encantados pelos arimbás das cunhãs, pintados de urucu e genipapo, falam nehengatu. O corsário Jacques Riffault, passeando no Refoles, expulsa bons marinheiros do Terceiro Distrito Naval. O arquiteto e engenheiro Padre Gaspar de Sampères constrói estrela de pedra nos recifes de arenito, a Fortaleza dos Reis. Padre Miguelinho ainda sangra com os tiros de arcabuz no peito do Mártir da Independência.
Ah, Natal, Natal de encantos mil. Seguimos perpetuando o presente sem olhar para o futuro. Devemos, pois, ter a consciência de que sem cultivarmos o passado, não há futuro.
Diogenes da Cunha Lima – Advogado, Poeta e Presidente da Academia de Letras do RN
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