CHARLES DICKENS E O DIREITO – Marcelo Alves Dias de Souza

CHARLES DICKENS E O DIREITO –

Charles Dickens (1812-1870) é, justificadamente, o mais afamado dos romancistas ingleses. Antes de mais nada, ele soube interpretar, de forma atemporal, sua época, período das grandes transformações advindas da Revolução Industrial, que atingiram diretamente a sociedade inglesa de então, mas repercutindo, também, no restante da Europa e, por que não dizer, do mundo. É autor de vários clássicos da literatura, como The Pickwick Papers, Oliver Twist, Nicholas Nickleby, The Old Curiosity Shop, Christmas Carol, David Copperfield, Bleak House, Hard Times, Little Dorrit, A tale of Two Cities e Great Expectations, apenas para citar os mais conhecidos. Quase todas essas obras já foram traduzidas para o português, e seus enredos são hoje bastante conhecidos do grande público, mesmo que através das inúmeras adaptações realizadas para o cinema e para a televisão.
Dessa imensa produção de Dickens, achei por bem destacar hoje, pelo enredo que gira em torno do direito, mas também por motivos pessoais que explicarei em seguida, o romance “Bleak House” (“A Casa Sombria”, em português), originalmente publicado em 1853, mas que pode hoje ser facilmente encontrado em edições baratas paperback de editoras como Penguin, Wordsworth ou Oxford.
Interessantemente, Dickens, ao contrário de Shakespeare (que foi objeto, neste espaço, da crônica “Shakespeare e o Direito”) tinha considerável formação jurídica, tendo trabalhado, segundo seus biógrafos, como ajudante em escritório de advocacia, clerck (no direito inglês, uma espécie de escrivão, ao contrário do direito americano, onde é uma espécie de assessor extremamente qualificado) e repórter judiciário.
Essa experiência certamente permitiu a Dickens criar o intricado enredo de “Bleak House”, difícil de ser aqui resumido, mas que gira em torno de um bizarro caso de herança denominado “Jarndyce and Jarndyce”, que é julgado nas extintas Chancery Courts, sob o sistema/ideia de Equity. Tendo precisamente como pano de fundo o moroso desenrolar do caso e a vida nas cortes de justiça de Chancery Lane, em que o caso é periodicamente tratado, inúmeros eventos afetam as muitas personagens – Esther Summerson, a heroína, Dr. Woodcourt, Richard Carstone e Ada Clare, para citar algumas -, cujas vidas restam, sob variados graus, determinadas pelas idas e vindas de um arbitrário sistema legal. E, absurdamente, ao fim do processo, a herança acaba completamente consumida pelas despesas com advogados e custas legais.
Registre-se que a Equity é um tipo de prestação de Justiça fundada num sistema de regras e princípios que se originaram como uma alternativa para as duras regras do common law e que eram baseadas naquilo que era justo na particular situação, afastando-se o direito da solução do caso. Sob a responsabilidade, à época, das Chancery Courts ou Courts of Equity (presididas pelo Lord Chanceller), era aplicada, por exemplo, para casos de herança e propriedade. Parece – e assim demonstra Dickens, apontando sua lentidão e falta de transparência, entre outras coisas – que essas cortes não funcionavam tão bem, eufemisticamente falando, não obstante a idéia de equidade ser louvável. No Brasil, aliás, apenas excepcionalmente, se permite o julgamento por pura equidade (como nos casos da jurisdição voluntária e da arbitragem), embora sua aplicação, respeitando sempre os princípios legais, seja incentivada.
Certamente, do tempo de Dickens para cá, a prática judicial inglesa melhorou consideravelmente; a nossa também, apesar de não tanto, dirão os mais críticos.
E o mundo em que vivemos, melhorou? E o ser humano em si?
Essa reflexão me veio quando preparava a estrutura deste artigo, em linda tarde de outono, sentado em um banco da praça do Lincoln’s Inn, a meio caminho do meu cotidiano trajeto em direção à Chancery Lane e à Maughan Library, biblioteca do King’s College, reconhecidamente a mais bela de Londres. Despertando para o fato de que a “minha Londres” era a mesma Legal London do romance de Dickens, procurava não observar os sinais do mundo de hoje, alguns poucos carros estacionados e pessoas em trajes contemporâneos. Buscava, sim, fixar minha visão naqueles edifícios mais que centenários, certamente frequentados por Dickens em sua cotidiana vida de poeta. E me vinha uma estranha saudade daquele tempo, de um tempo que não vivi.
O fato é que sou dado a uma saudade antecipada de memórias que ainda vou ter; mas, pela primeira vez, fui tomado por uma angustiante saudade de um tempo ou daquilo que nunca iria viver.
Felizmente, foi aí que me chamou atenção uma linda moça – acredito, advogada recém-formada – que passava, distraída, talvez saudosa também, não sei. Um pouco tomado por sua beleza, lembrei-me de que nosso mundo, comparado com o de Dickens e as mazelas dos primeiros anos da Revolução Industrial – aquele tempo sobre o qual Dickens, em A tale of Two Cities (1859), afirmou: “It was the best of times; it was the worst of times. (…).” – apresenta-se bem melhor. Quanto ao ser humano, a linda moça que passava era, para mim, pelo menos naquele instante, o “gênio da raça”, como no picaresco poema de Ascenso Ferreira; e isso, gostosamente, me bastava.
De mais a mais, aquela visão, mesmo que fugaz, me deu a certeza de que o ser humano vive melhor se olhar para frente.

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP

As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores
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