NUM BAR EM CASABLANCA –

Do lado de fora, como que flutua, o letreiro . O nome iluminado numa bolha de néon, como se o lugar pudesse falar; como se fosse um personagem, o personagem principal de uma história. Recebo a saudação do porteiro que usa um fez na cabeça. Meu olhar, em passos longos e mudos, me ultrapassa. O bar fervilha de gente. À noite , é como um bordel onde as pessoas são a principal mercadoria. No centro, um piano: músicas processando memórias.

Por um momento, minha visão é bloqueada pelo braço de um garçom que passa, e se afasta. Vejo de relance um homem, de perfil, sentado à mesa, pondo um cigarro entre os lábios, que o tragam em seguida. Meu andar passa pelo porteiro à porta, pelo salão do bar comprido, até o santuário interno das roletas; até a mesa onde, diante de um tabuleiro de xadrez, um cinzeiro e um calendário, está o patrão. Que, também, fuma e pensa, enquanto o tempo passa. Aliás, todos fumam e bebem. Cigarro e álcool são sublimes. E o tempo passa. Alguns esperam, outros caçam. Enfim, a cidade é o lugar para esperar, esperar e esperar.

Eu me sento à mesa e, claro, também acendo um cigarro. À direita da porta, entram dois casais bem vestidos. Acompanho o progresso deles a uma mesa. Meu pensamento corre ligeiramente ao letreiro do bar e imediatamente volta. Dois oficiais americanos, acompanhando uma mulher, entram no bar seguido por dois árabes desacompanhados. O resto é preenchido com imagens de taças de champanhe sobre as quais pairam nuvens de fumaça cinza. Vistas de um ângulo ligeiramente mais baixo, as taças enfumaçadas captam toda a luz do café. Quando, de repente, ela chega.

Vejo as suas costas nuas atravessando a porta. O pianista, guardião do segredo e da inversão do tempo, quando a vê ataca e toca “Love for Sale”. “ Nunca pensei que a veria de novo, Srta Ilsa. Muita água passou sob a ponte “. Ela pede que ele toque uma das “velhas músicas”. Ele tenta contentá-la com “Avalon”. Não é o que ela quer ouvir. Toque “As Time goes by”, ela diz, o que desperta no olhar de Rick ao longe, a busca do tempo perdido; desde a hora, cinco para as cinco, no relógio da Gare de Lyon, em que ela de Paris não partiu com ele. Até agora. Foi assim que começou. Naquela noite fiquei sabendo. Anos após viverem intenso romance em momento inoportuno (apaixonaram-se no dia que os alemães marcharam sobre Paris) um casal se reencontrou em um bar de Casablanca.

Foi assim que vi, ao vivo, como se assim fosse, os detalhes da estória. Até o final, quando o dono do bar afasta-se na névoa do aeroporto de braços dados com um outro, ao som dum crescendo da “Marselhesa”, falando do início de uma nova amizade. Não interessa quem fica com quem ou se alguém fica só e sem ninguém. A felicidade será sempre uma isca na altura dos olhos. Tentar alcançá-la é o que conta. Num pouco de romance, em sonhos desfeitos, pitadas de frustrações, num rosto, num belo par de pernas a serviço do nosso erotismo; em promessas caídas do céu , em atitudes ambíguas nos perdemos, às vezes. “Rosa Púrpura do Cairo” em Marrocos, naquela tarde entrei na tela. E me perdi. Quase não dei conta que era um filme.

José DelfinoMédico, musico e escritor

As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores
Ponto de Vista

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  • Que beleza de texto! Eu também me senti personagem do filme. Parabéns a Delfino pela crônica e ao PontodeVista pela inclusão do escritor no rol dos colaboradores.

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