VILLA LOBOS E O VIOLÃO – José Delfino

VILLA LOBOS E O VIOLÃO –

Muitos afirmam que o instrumento predileto de Villa Lobos foi o violoncelo. Na verdade, um dos seus preferidos. Uma análise mais atenta, sugere que a fonte principal de inspiração que formatou a idéia de equilíbrio em suas composições foi, possivelmente, o violão: a chave que possibilitou soluções melódicas e harmonias inéditas que caracterizam o seu estilo (e linguagem musical) caracteristicamente brasileira.

Talvez esse detalhe não tenha se exteriorizado o bastante devido aos modismos e preconceitos da época . Existem explícitas evidências que suportam esta afirmação . Foi o instrumento de sua intimidade, em casa e em rodas de amigos, apesar de tê-lo renegado em público, segundo Mindinha, sua segunda mulher. Atitude compreensível na medida em que o violão não era considerado um instrumento de salão, de música de verdade, e sim um instrumento vulgar de chorões e seresteiros.

Poder-se-ia afirmar de maneira simplista que ele está presente em muito da sua obra. Não deve ter sido por acaso o primeiro de uma serie de doze choros de câmera ter sido escrito especificamente para o instrumento.

Sobre o “Choros № 1” ele mesmo reconhece a fonte de inspiração ao afirmar que “ o tema principal, as harmonias e modulações , apesar de pura criação, são moldadas em cantores e tocadores populares como Sátiro Bilhar, Ernesto Nazareth e outros”.

O terceiro movimento da “Bachiana № 1” para oito violoncelos, foi construído , novamente , “à maneira de Sátiro Bilhar”. Desconfiam os críticos que ele representava a moldura de um choro em direção a um Bach tupiniquim.

A introdução da “ Bachiana № 5” para soprano e oito cellos “ define claramente o ambiente do ponteio dos violões dos seresteiros” como ele próprio afirmou. A ária dessa mesma Bachiana foi transcrita e reduzida para dois violões por Segóvia e , curioso, percebe-se que a atmosfera do choro – escondida no pizzicato do segundo e quarto violoncelos da partitura original – vem à tona , com o violão-centro exercendo esse papel.

A combinação, no mínimo inusitada, de flauta, oboé, saxofone alto, violão e harpa aparece no seu “ Sexteto Místico” . Diz Eurico França: “ Só a presença do violão contribui para dar cor de brasilidade à partitura que, de resto, tem sentido universalista e que, por sua atmosfera, assume lugar à parte na música de câmera de Villa Lobos”.

A importância do entrelaçamento do compositor com o violão popular é esmiuçada por Turibio Santos que invoca como “testemunhas “ Quincas Laranjeiras, Anacleto, Sátiro Bilhar, Catulo da Paixão Cearense, João Pernambuco, entre outros. O violão – continua Turibio – “ foi o seu arquivo musical. Desnecessários os apontamentos se o instrumento estivesse por perto. Nele se registram as primeiras impressões de Bach … as rodas de choro do Rio, as melodias recolhidas em todo o Brasil ( como “Caicó” , que remete ao nosso folclore musical ) e a literatura clássica do violão.

Surpreendentemente , o compositor escreveu poucas peças específicas para o instrumento. Entretanto, exauriu as suas potencialidades associando lirismo à dificuldade técnica.

Data de 1905, referência sobre sua primeira peça para violão “ Panqueca” que não se sabe se é lenda publicada pois , se havia partitura, ela sumiu. Nunca foi editada. De 1908 é a “ Suite Popular Brasileira”, dedicada a Madeleine Reclus e Maria Teresa Teran, contendo cinco danças “euro-brasileiras”: “ Mazurka-Choro”, “Schottish – Choro”, “Valsa-Choro”, “Gavota-Choro” e “Chorinho”. Doze anos após , compôs o “Choros № 1”.

A continuidade com o instrumento foi totalmente assumida a partir de sua grande amizade com Segóvia, iniciada em Paris em 1924. Desde então, libertou todo o violão que havia ainda nele. Nessa época, em homenagem ao amigo, surgiram os “ Doze estudos para violão”. Prefacia Segóvia: “ Eis aqui doze estudos escritos com amor pelo genial compositor brasileiro Heitor Villa –Lobos. Contém, ao mesmo tempo, fórmulas de surpreendente eficácia para o desenvolvimento de ambas as mãos e belezas musicais desinteressadas, sem fins pedagógicos , valores estéticos permanentes de obras de concerto”.

Nos “ Cinco prelúdios para violão” , alguns com conotações de andamento a sugerir “brasilidades”: a dolência dos seresteiros, no primeiro; a ginga do malandro carioca, no segundo; no quinto, uma gozação bem nossa, em compasso ¾, imitando a cadência usada pelos pés-de-valsa europeus daquele tempo.

O de número três, nem os jazzistas americanos deixaram passar em branco: Roberto Muggiati escreve: “ O baterista Max Roach , no álbum “Speak Brother Speak” ( bastante sugestivo, por sinal !) se apropria do prelúdio № 3 para violão” de Villa –Lobos, reintitulando-o “ A Variation” e improvisando em torno do tema ( com o saxofonista Cliff Jordan e o pianista Mal Waldron ) ao longo de 22 minutos, todo um lado do disco”. Ouvi o vinil: eles não apenas tocam os últimos 14 misteriosos compassos da peça, mas os reproduzem de fato e em espírito , com uma ousadia que espanta.

Com uma orquestração inovadora à época, ao extremo da inclusão na partitura de instrumentos cujo porte sonoro contrastam com o violão, como o trombone, e uma cadência final apoteótica que evoca a sua idéia fixa dos cantadores e seresteiros, surge o “ Concerto para violão e pequena orquestra . Um verdadeiro “tour de force” de complexidade técnica semelhante a outros emblemáticos do repertório específico como o “ O Concerto de Aranjuez” de Joaquim Rodrigo ou o “ Concerto № 1 op.99” de Castelnuovo-Tedesco.

Há algum tempo, ouvi uma versão para dois violões do prelúdio da “Bachiana № 4 “ onde a transcrição de Sérgio e Odair Assad é tão perfeita e amoldada à técnica do instrumento ao ponto de eu ficar imaginando Villa a cometer o esboço da peça , dedilhando-a ao violão, com aquele imenso e fálico charuto entre os dentes.

Filigranas e suposições à parte, esse Deus profano, escreveu o que talvez haja de mais verdadeiro e genuíno na arte sonora brasileira e definitivamente proclamou para o mundo o valor de todas as manifestações da nossa música.

José DelfinoMédico, músico e escritor

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