O RETRATO DE THOMAS HARDY –
Sempre que saio do prédio do King’s College London, dou de cara com um retrato de Thomas Hardy (1840-1928). A universidade relaciona Hardy, ao lado de outras celebridades e de ganhadores do prêmio nobel, no rol dos seus ex-dirigentes, ex-professores, ex-alunos, ex-algo. Por isso, o retrato. Andei investigando e parece que ele passou mesmo por lá, por volta de 1860, estudando línguas modernas. Não sei se aprendeu a falar português. Em inglês, como romancista, contista, poeta e dramaturgo, escreveu como poucos.
Mas da última vez que topei com Thomas Hardy, ele estava de cara amarrada. Dizem os mais espiritualizados que ele teria sido informado do caso da vovó americana que, aos 72 anos, namora o neto de 26. O casal ainda está programando ter um filho, a partir de inseminação artificial e de uma barriga de aluguel. E se essa estranha ligação está causando o olhar torto de Hardy (e por que não, o nosso), a vovó parece não estar nem aí para esse furor. Com outro tipo de furor (segundo os maledicentes), ela afirma ter uma vida sexual bem ativa com o neto, que, por sua vez, confessa sua atração por mulheres mais velhas.
Bom, parece que Thomas Hardy não gostou do rumo que as relações afetivas estão hoje tomando. “Mudanças depressa demais e tortuosamente”, teria ele dito. Psicograficamente, claro. Mas logo Hardy, que foi um reformista, inspirado pelas ideias do pensador John Stuart Mill. Ele que casou duas vezes e, em segunda núpcias, com sua secretaria, quase quarenta anos mais jovem. Hardy que, consciente das mudanças que seu tempo impunha, buscou desmascarar, em sua obra, os muitos tabus (eufemisticamente chamados de convenções) existentes no Século XIX inglês. Tabus esses que, em última medida, só levavam à infelicidade. Ele que ambientou muitos de seus romances na “semifictícia” Wessex (inspirada na sua Dorchester de sua infância), exatamente porque nunca sentiu-se à vontade em Londres, onde, apesar de festejado pela crítica literária, era considerado, pela mentalidade conservadora da época, como um escritor “imoral”. Hardy que, em seus dois últimos romances, “Tess of the d’Urbervilles” e “Jude the Obscure” (obra que, por sua explícita abordagem da sexualidade, foi apelidada de “Jude the Obscene”), assumiu explicitamente o papel de desafiador da hipócrita moralidade sexual de então.
Para se ter uma ideia, em “Tess”, Thomas Hardy denuncia como a sociedade vitoriana tratava, com dois pesos e duas medidas, as sexualidades feminina e masculina. Ele critica a arcaica exigência da pureza feminina (leia-se virgindade), que, no fundo, foi a causa primeira do desenrolar trágico da vida de Tess Durbeyfield, a heroína que é chamada no subtítulo do romance, com triste ironia, pelo autor e seu único advogado, de “uma pura mulher”. Nascida em uma pobre família do campo, mas levada pelos delírios de nobreza do pai enlouquecido, ela ambiciosamente sonha com um lugar ao sol. Tess tem em Angel Clare, com quem vem a se casar, o seu verdadeiro amor. Angel credita-se como “um livre pensador”, mas não age como tal. Partindo em seguida para o Brasil (curiosamente), Angel abandona Tess na noite de núpcias quando ela confessa não ser mais virgem, muito embora ele também tenha tido relações sexuais antes do casamento. Tess teria sido seduzida (para muitos críticos, estuprada) pelo bem-nascido Alec d’Urberville, quando tinha apenas 16 anos. Após anos de infrutíferas tentativas de contato com o marido e uma trágica existência, Tess é novamente seduzida pelo dissimulado Alec e torna-se, para ajudar a família, sua amante. Quando Angel retorna do Brasil, encontra Tess nos braços de Alec. Tess, enlouquecida por seu segundo “erro” e para se ver enfim livre, termina por matar Alec d’Urberville.
O final do romance é exemplar ao denunciar leis (ou regras de moral) absurdas ou, no mínimo, mal interpretadas. Ao descrever a execução de Tess (quando o juiz teria terminado o seu “esporte” para com a executada), Hardy nos mostra a impotência de Angel e Liza-Lu (jovem irmã de Tess) ao ser “feita a justiça”. Hardy nos sugere a possibilidade de um futuro enlace entre Angel e a virgem Liza-Lu, a Tess “vitorianamente” pura. Apenas sugere, pois, pelas estritas leis da época, desde 1835 (e o final do romance se passa em torno de 1880), era considerado incesto e ilegal na Inglaterra casar-se com a irmã da falecida esposa (uma espécie de ultraconservador incesto por afinidade). A legislação de 1835, após dezenas de mal sucedidas tentativas nos mais de cinquenta anos seguintes (muitas vezes aprovadas na Casa dos comuns e rejeitadas na Casa dos Lordes), só veio a ser reformada em 1906.
“Mas casamento de avó com neto, com a perspectiva de um filho que será, entre outras coisas, tio do pai e bisneto da mãe, já é demais”, teria desabafado o reformista Hardy, segundo me disse um colega afeito a coisas do “outro” mundo.
Não me considero uma pessoa retrógrada, tampouco um revolucionário. Sou um reformista convicto. E aprioristicamente contra tabus, posso dizer. Mas devo concordar com o enfezado Hardy. Talvez a coisa esteja indo rápido demais. Por exemplo, não faz muito tempo, a Procuradoria-Geral da República, em uma iniciativa bastante louvada, defendeu nacionalmente o reconhecimento das uniões homoafetivas como entidades familiares. Mas veio um colega na nossa rede virtual e, mais animado, sugeriu a extensão da iniciativa às relações hoje consideradas incestuosas. Defendia expressamente a legalização do casamento entre irmãos, pais e filhos, “coisinhas simples” assim. Alguns acharam que ele estava brincando. Outros, não. Sei lá, tem doido para tudo. Não teve esse que se juntou com o avô. Ou foi com a avó? Já nem sei mais. Que confusão!

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP

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