O MUNDO É GAY! – Flávia Arruda

O MUNDO É GAY! – 

Estávamos na sala em que compartilhamos nossos dias úteis, o aroma do café fresco se misturava ao burburinho das conversas, um ritual cotidiano que nos dá força para enfrentar a labuta. Interessante, era como se o pretinho (nesse momento valendo ouro) nos lembrasse de que, apesar das preocupações e dos desafios, ainda tínhamos muito a celebrar. Envolta a mesa redonda, onde praticamos a comensalidade, um mosaico de vidas se revelava: preocupações com os filhos, o preço do ovo que insistia em subir, a famigerada gasolina e o inevitável balanço do Carnaval. Foi então que ela, nossa querida colega de trabalho, com os olhos arregalados e um sorriso meio amarelado, soltou a seguinte frase: “O mundo é gay!”. Um silêncio momentâneo se instalou, era como se tivéssemos tomado um choque, e todos estivessem absorvendo aquelas palavras.

Minha amiga, recém-chegada de Salvador, descrevia o Carnaval onde a comunidade LGBTQIAPN+ brilhava com muita intensidade, entusiasmo e maioria. “Para cada dez pessoas, nove eram gays”, ela calculou, com um misto de espanto e decepção. Ela continuou dizendo “fiquei no quarto com quatro gays e uma moça, (ela estava hospedada em um Hostel – são estruturas hoteleiras que possuem quartos compartilhados. O hóspede paga apenas pela sua cama e compartilha o quarto com outras pessoas que não se conhecem) Ela prossegue: “eles me amaram, o mais curioso que observei é que APESAR de serem gays eram muito bem sucedidos” acrescentou, como se a surpresa ainda a envolvesse. O “apesar” dela, como um elemento distorcido e desconforme, me transportou para um universo de memórias e reflexões. Era como se eu estivesse revivendo momentos passados, pesados, lembrando-me das lutas e das vitórias que minha família e eu havíamos enfrentado ao longo dos anos.

Sou mãe de três filhos, dois homens gays e uma filha lésbica. Confesso que o “apesar” me assombra, me atormenta, revelando o peso do preconceito que ainda paira sobre os meus e todos os outros filhos homossexuais. Como se a orientação sexual pudesse diminuir o caráter, a honra, a dignidade, a competência de alguém. Como se o amor deles fosse menos merecedor. É um sentimento que me dói profundamente, pois tenho absoluta e incombatível certeza que eles merecem todo o respeito e amor do mundo, independentemente de quem escolhem amar. É difícil e, ao mesmo tempo, chato ter que explicar o óbvio.

Minha colega de trabalho tem a mesma idade que eu, ela é uma mulher de coração enorme, generosa e guerreira, dentro de sua realidade e vivências. É fato que pertencemos a uma geração que viu o mundo se transformar de maneira rápida e incrível, somos testemunhas oculares da transição da máquina de datilografia para o computador, das chapas para as selfies. Fomos obrigados a nos adaptar do dia para a noite. Somos da geração em que a mulher, aos quizne anos, debutava para ser apresentada a sociedade. Ah, tinha que casar virgem; o divórcio, para o sexo feminino, ainda era sinônimo de: “Mulher separada é puta”. Fomos educadas para sermos “bela, recatada e do lar”. É entendível o comportamento dela, não compreensível, tendo em vista que ela é divorciada e sofreu preconceito ao se separar. Sim, todas nós testemunhamos a luta por igualdade de gênero, liberdade de pensamento, expressão, sexualidade dentre outras, inspirada por mulheres como Leila Diniz, Rita Lee, Simone de Beauvoir e tantas outras bruxas que dançaram sobre as fogueiras da injustiça, abrindo caminhos, rompendo barreiras, enfrentando a sociedade para que pudéssemos ser quem somos hoje. São mulheres que, com coragem e determinação, mostraram que é possível mudar o mundo, mesmo que seja um passo de cada vez. É uma pena que nem todas compreenderam.

Mas a luta continua. O “apesar” da minha amiga é um lembrete de que o preconceito é sutil, persistente. É preciso desconstruir essas ideias, mostrar que o amor é amor, em todas as suas formas, e ponto final. Meus filhos, e todos os filhos LGBTQIAPN+, são merecedores de respeito, felicidade e sucesso. Eles podem e devem viver em um mundo onde possam ser eles mesmos, sem medo de julgamento ou rejeição. O Carnaval de Salvador, com sua explosão de cores e diversidade, pode ter sido um choque para minha amiga. Mas para mim, é um vislumbre do futuro, um mundo onde a aceitação e o respeito prevalecem. Um mundo onde o “apesar” não existe, onde o amor é celebrado em todas as suas formas, e onde todos podem viver com dignidade e felicidade. Abramos nossas mentes para um futuro mais humano e sem preconceitos, como canta Lulu Santos, nesse trecho:

“E a gente vai à luta

E conhece a dor

Consideramos justa toda forma de amor”

 

 

 

 

Flávia Arruda – Pedagoga e escritora, autora dos livros As Esquinas da minha Existência e As Flávias que Habitam em Mim, crônicasflaviaarruda@gmail.com

As opiniões contidas nos artigos/crônicas são de responsabilidade dos colaboradores
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