MEMÓRIAS SUBURBANAS –
Nestes dias sombrios, incertos e perigosos sinto-me como muitos devem ser ou estar se sentindo. Nostálgico, atacado por reminiscências. E para um suburbano, parece-me que essa relação com a memória é mais forte e até mais romântica. É assim que, por confessado escapismo e com uma grande dose de carinho, estou e vivo com a minha infância na cabeça.
Conhecem ou lembram-se da Guarita? Foi lá.
A Guarita não é cidade nem bairro. É um emaranhado de ruas, espremidas entre o Alecrim que as expulsa e o rio que as rejeita, estendendo-se ao longo da “linha do trem” – ou “dos trens”, porque por ela passam os caminhos de ferro de dois destinos outrora importantes – o de Recife, a oeste e o de Ceará Mirim, mais ao norte.
Foi o palco das minhas maiores e mais emblemáticas experiências infantis. Lá eu fui criança e adolescente e lá conheci e convivi com pessoas e ocorrências que hoje fazem parte das maiores recordações. É cenário e personagem da melhor fase da vida de qualquer pessoa, a sua infância. Uma das alegrias dos meninos da Guarita era a passagem dos comboios dos trens que, na chegada, de carreira morta, deslizavam reclamando e gemendo entre o casario, com os moleques afoitos morcegando nos estribos dos vagões, enxotados aos gritos pelos condutores e guarda-freios.
Aventura de escoriações, raladuras e braços quebrados na disputa pelas maiores peripécias nas plataformas dos carros em movimento. Outra era a descida dos caminhões que abasteciam de lenha a Oficina de Tração da Estrada de Ferro. Vinham pela avenida, desembocando na ladeira de pista precária que fazia ranger as juntas dos gemecês e chevrolés, os freios-de-mão puxados, descendo pela embocadura da Avenida Quatro. A algazarra em torno dos carros tinha um motivo. Quase todo mundo cozinhava a lenha, e as cargas eram alvo do interesse pelas toras que os caga-lona, generosamente, lançavam das pilhas.
Vêm-me à lembrança aquelas noites na porta de casa quando minha mãe, culta, lúdica, generosa, liderava a vizinhança em brincadeiras juvenis. Ou recebia as amigas para discutir e comentar um livro romântico, o último filme “de amor”, a mais recente fotonovela, as novas canções do rádio. Doce recordação era vê-la de sapatos e roupas discretas, elegante e cheirosa, junto com meu pai, subir a ladeira para ir ao cinema ou ao querido auditório da Rádio Poti.
Era também de alegria o tempo das festas do padroeiro São José, do orgulho de ser ajudante de missas, sob a liderança do Padre João, frequentar as aulas de catecismo e sonhar com as delícias do céu ou temer os castigos do inferno, dependendo de nós a escolha.
No mês de março, na frente da histórica capelinha, no mesmo espaço onde era montada, em tardes tépidas e iluminadas a rede dos jogadores de peteca, armavam-se o parque de diversões, as barracas de bebidas, guloseimas e comidas típicas e ao terminar os dias de folguedos elegia-se a Rainha da Festa. A amplificadora recebia as oferendas musicais e rodava Nelson Gonçalves, Ângela Maria, Silvio Caldas, Orlando Silva, Cauby Peixoto, Augusto Calheiros, Luiz Gonzaga.
Namoros e casamentos começaram ali, nascidos de uma música oferecida, um piscar de olhos, um psiu, um galanteio. As saias rodadas, plissadas e blusas recatadas das adolescentes – porque calças compridas não eram ainda muito aceitas – faziam tanto sucesso quanto as roupas justas e os contidos decotes que provocavam suspiros e desejos dos paqueradores que circulavam em calças de linho, brim ou tropical, dependendo da sua condição financeira; as camisas, de mangas longas dobradas até a altura do antebraço ou mangas curtas, também dobradas para ressaltar o muque.
Praticavam tiro ao alvo nas barracas de prêmios, fumavam um Hollywood, um Continental, um Astória, bebiam uma “brahma”, uma “pitu” e como orgulhosos conquistadores, arrojavam-se em esperançosas paqueras com as meninas da festa. Os moleques balançavam nos botes, rodavam no carrossel ou elevavam-se nas rodas-gigantes. Depois, iam azucrinar os pais pelos saquinhos de beijo-de-coco, fubá de milho, barquinhos de castanha, ou um copo de raspadinha. No fim da festa a Rainha eleita recebia coroa e faixa, para reinar orgulhosa, invejada e desejada, até o ano seguinte.
Eu tinha oito ou dez anos e apaixonei-me por uma delas, a mais linda, gentil e querida de todas. Ainda hoje parece que a vejo sorridente, no palanque em frente à capela, recebendo as suas honras de eleita. Mas – triste descuido! – esqueci o seu nome. A paixão infantil, entretanto, não me impediu de, voluvelmente, ver-me tomado de amores por outras deusas do lugar.
Mas poderia existir na Guarita uma moça tão ou mais bela que a rainha daquele ano? Conheci uma, de verdes olhos penetrantes, a boca grossa e molhada, a voz rouca, sensual, aquele grande corpo torneado e ainda por cima, mulata! Com todos os dengos e venenos dessas benditas. E dessa eu lembro o nome, porque viveu perto de mim, conviveu e brincou comigo, fez-me levar recados para o namorado, levou-me ao cinema, experimentei o seu perfume, quando me oferecia o colo e o pescoço, onde eu cheirava o Royal Briar com que se perfumava quando saía.
Os homens do bairro a desejavam, e quem sabe teve até caso com um desses admiradores. É possível, embora fosse conhecido de todos o seu interesse por um sapateiro do Alecrim, um suarento, balofo e feioso bate-sola para quem ela enviava recados e, amiúde, pedidos de dinheiro e outros favores. Diziam que a generosidade do homem seria o único motivo para a permanência desse incompreensível namoro dos suores, banhas e a sua carantonha, com as curvas, requebros e meneios da bela mulata. Mas…
Nelson Gonçalves canta em “Aquela Mulher”, de Cícero Nunes: “…o nome dela eu não digo, / não quero ter inimigo, / nem quero sentir remorso…”
Quem da nossa idade não possui essas lembranças?
Alberto da Hora – escritor, cordelista, músico, cantor e regente de corais
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