LÍNGUA MUDA – Heraldo Palmeira

LÍNGUA MUDA –

Trocar de computador virou provação a qualquer usuário comum. Quem não se tornou um iniciado em informática tem de percorrer uma estrada acidentada, cada vez mais complexa e sem sentido.

Os sistemas e aplicativos que vêm instalados de fábrica estão repletos de porcarias que nunca serão utilizadas pela maioria de nós. Mas servem para nos impor navegações desnecessárias, na tentativa de vender outras porcarias. E para criar um labirinto insondável, capaz de tornar mais lento e complicado o funcionamento da máquina. Claro, porcarias de difícil remoção, que terminam exigindo a presença — e os custos — de um técnico.

Os chamados cabos crossover ou cabos cruzados nunca foram popularizados e têm operação pouco amigável a usuários comuns, embora sirvam para ligar o computador antigo ao novo e permitir a transferência direta da maior parte do conteúdo instalado. As placas de rede mais modernas prometem o mesmo, mas nem sempre prometer é fazer. Ou seja, alternativas eficientes àquela gincana por HDs internos e externos, pen drives, horas infindáveis de trabalho e paciência continuam inacessíveis à maioria.

Depois de tudo funcionando, a desagradável surpresa para quem, como eu, escreve todos os dias: só existem versões de bons dicionários da língua portuguesa compatíveis até o Windows 7. Liguei para as editoras dos nossos principais dicionários. Péssimo atendimento, falta de informações e nenhum interesse em resolver meu problema — que é de muitos — ou ouvir sugestões de consumidor.

É possível instalar em paralelo uma máquina virtual, com algum sistema operacional antigo compatível com os dicionários. Ou seja, tem-se a opção de comprar uma máquina de última geração e maquiá-la para parecer mais antiga. Um espetáculo!

Esse é o retrato perfeito dessa modernidade incapaz de entender a importância de uma língua que não foi construída em bits e é guardada na nobreza dos dicionários. O mesmo labirinto da falta de identidade que tenta dar solenidade aos computadores usando o som sintetizado das teclas das velhas máquinas de datilografia. Ou colocando sons de telefones de baquelita nos smartphones.

A chateação transformou-se em desolação quando visitei lojas das principais redes de livrarias, em São Paulo. O “ponto alto” foi encontrar um vendedor de uma delas, no Shopping Iguatemi, que não sabia o que é dicionário. Era muito jovem, vá lá, mas é desolador ver um vendedor de livraria não ter o registro da palavra “dicionário” no próprio repertório linguístico. E ainda perguntar, antipático, “Dicionário?!”, com aquela empáfia enfadonha dos jovens ignorantes. Sim, parece mentira, mas o moço realmente não sabia o que é um dicionário.

Buscou ajuda de um colega mais experiente e o meu quadro de solidão de consumidor mudou pouco: o homem, bem passado dos quarenta, não conseguia conversar a respeito da versão eletrônica do produto porque não tinha qualquer familiaridade com o mundo digital. Balbuciou algo do tipo “Parece que vem um CD dentro do livro” ao me mostrar os exemplares impressos, mas empacou quando eu disse que aquelas versões eram incompatíveis com meu sistema operacional. Saí sem decifrar quais palavras do meu vocabulário ele não conhecia.

E por falar em livrarias, é impressionante essa febre atual de livros sem palavras, que servem apenas para colorir e estão salvando o mercado editorial. Santo Deus! Faz lembrar o que disse o escritor José Saramago diante dos econômicos 140 caracteres do Twitter, antevendo que nessa pisada o homem ainda vai acabar “chegando ao grunhido”.

Continuo sem bons dicionários no computador. Como viajo muito, será bem “animador” tirar da estante para enfiar na mala livrões que pesam, no barato, uma tonelada de ausência de inteligência do mercado digital.

Muito mais grave é testemunhar uma perigosa realidade: a língua portuguesa está virando estrangeira em Pindorama. Quando o dicionário passa a ser tratado com irrelevância, quando o “pai dos burros” vira filho bastardo de cavalos batizados, azar do futuro.

Conversando com um amigo também iniciado em dicionários, constatamos desolados que vamos convivendo com esse fenômeno mais visível nas grandes cidades: livrarias cheias de zumbis. Exemplares primitivos de uma espécie que, não demora, terá polegares diferentes, próprios para teclar em dispositivos cada vez mais minúsculos — como o resultado que geram. E sairão por aí espalhando seus grunhidos digitais.

Heraldo PalmeiraProdutor Cultural e Escritor

As opiniões contidas nos artigos/crônicas são de responsabilidade dos colaboradores
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