FEITO UM FILME DE FELLINI –
Último sábado do mês de fevereiro de 1977. Seria mais um dia de calor dos infernos em Natal. Manhã da comemoração do título de livre docente da UFRN de Murilo Barros. Programado um rega-bofe às dez horas na casa dele na rua Trairi. O país pegava fogo, também. Geisel tentando “controlar” os porões da repressão para viabilizar a democracia “relativa”, segundo ele e Golbery, para uma absoluta “ lenta, segura e gradual”. A inflação, à solta, atropelando os mais pobres. Ninguém viajava de carro . O preço da gasolina nas alturas . Nas vésperas dos aumentos formavam-se filas quilométricas.
Durante a crise, ninguém podia andar a mais de 80 quilômetros por hora nas estradas. Figueiredo já começando enriquecer o anedotário nacional, ao sugerir simplória alternativa para o petróleo caro: ” Botar o cavalo no arado e andar a pé”. Proibida a venda de combustíveis nos postos em fins de semana. Em viagens longas era necessário um galão de gasolina no porta-malas (escondido, porque era proibido). Cogitavam a implantação das “simonetas” cupons de racionamento, batizados em “homenagem” ao então ministro Mário Henrique Simonsen, que acabaram não saindo do papel . Usava-se a direção só em direção ao overnight. Talvez até por conta disso , ele pegou um avião da Varig em Fortaleza e veio passar o fim de semana conosco.
O telefone me acordou em torno das oito horas: “Zedelfino ? /Eu / Murilo Barros / Já ?/ A festa não é às dez , meu padrinho ?/ Ligeira mudança de planos , Zé/ João morreu esta madrugada / Venha cá”. Nininha tinha ido à cozinha antes do sol nascer e deparou com ele dormindo de bruços no chão. O local iluminado apenas pela réstia de luz vinda da porta da geladeira entreaberta . Sem querer incomodar, fechou a geladeira, deixou tudo no escuro de novo e voltou pro quarto. Às oito regressou para abrir as janelas. Tentou acordá-lo, em vão. O corpo já rígido, em decúbito ventral, um pouco entortado à esquerda, o rosto em perfil colado ao chão e os braços abertos como duas asas de um pássaro escuro em pleno voo. Um copo quebrado colado à porta.
Fim de festa, comentei. Coisa nenhuma, João já havia dito uma vez pra nós que não. A festa, agora de corpo presente, deveria seguir os seus novos e inusitados trâmites. Todos os comes e bebes transferidos para o quintal entre as árvores . Os convidados só deveriam saber do ocorrido na medida em que fossem chegando e para lá sendo encaminhados . Esvaziada a sala de visitas. Só a mesa, ao centro, onde seria colocado o caixão e várias cadeiras dispostas ao redor. Burocracia resolvida, caixão no chão da sala (com Aurino Villa ao vivo), partimos para vestir o morto, colocado à mesa.
Por conta dos braços abertos em rigidez não foi possível vestir a camisa. Todos sabiam o que deveria ser feito. Ninguém se dispunha a dizer. Foi quando sugeri antecipar a vinda de um dos comensais, Walter Dore, meu sogro, campeão de quebra-de-braço ( o esporte ), acostumado a entortar sem nenhum esforço quatro tampas de Grapette entre as falanges, falanginhas e falangetas dos dedos da mão. Ficou na lembrança o rosto dele, mais rosado ainda, após entornar meio copo de uísque dos bons, e o som de coisas sólidas se esmigalhando em suas mãos. Depois foi fácil: camisa, paletó gravata com nó Windsor, meia e sapato social preto. O clima de tristeza aos poucos desaparecia no quintal. A maioria já rindo das poucas e boas de João quando era vivo; homem de um coração imenso, como sempre dizem as pessoas nessas ocasiões. Tudo aparentemente sob controle, os Villa se virando para conseguir os galões de gasolina adicionais para o traslado até Fortaleza.
Foi quando a campainha tocou e chegou seu Antonio, que ninguém conhecia. Aspecto de beberrão contumaz, anêmico, rosto bastante inchado, função hepática já de muletas, e um pouco grogue, parecia. De sanfona às costas começou: “É a casa de Dr. Murilo Barros ? /É / É aqui que está o corpo de Dr. João Eudes ?/ É / Posso entrar ?/ Pode, por favor / É que o Dr. me pediu, e eu prometi, tocar “Assum Preto” pra ele no dia que ele morresse/ ??/ Tô aqui pra isso”. Encaminhado ao quintal, sem passar para ver o corpo antes, seu Antonio não deve ter entendido bem todo o etílico escarcéu já reinante nos fundos da casa. Logo se integrou ao balanço dos copos. Ao saber que talvez não fosse de bom tom fazer o que pretendia, desabou num choro convulsivo, alto e sem controle.
Posições um tanto divididas, Dr. Araken Irerê tem, então, a feliz idéia de propor uma votação. Seu Antonio ganhou de capote. Tentamos embriagá-lo mais ainda. Em vão. O traslado se deu na hora exata. Dizem que no caminho uma ponte caiu, o que forçou a contratação de um papa defunto Alencarino para continuar a proeza no outro lado do rio. E que quando chegou em casa foi recebido com uma festa de carnaval. Tudo invenção pra constar na lenda do meu querido amigo. O corpo foi velado por uma multidão no Centro Médico Cearense. Entre o morto e os feridos já morreram muitos: o papudinho, o papa defunto, a dona da casa, o quebrador de ossos, o Ginecologista que propôs a votação. E por aí vai. Tempus Fugit. Sempre .
José Delfino – Médico, poeta e músico
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