ESCRITOR E SÁBIO –

Victor-Marie Hugo (1802-1885) está no Panteão dos franceses. Literalmente, descansando no famoso edifício mausoléu, sito no Quartier Latin de Paris, cujo frontispício reconhece: “Aux grands hommes, la patrie reconnaissante” (“Aos grandes homens, a pátria é grata”). E literariamente, como um dos maiores escritores – de ensaios, de teatro, de poesia e, sobretudo, de romances – nascidos em França, no caso dele, na belíssima Besançon, capital do Franche-Comté. Quem já leu ou ouviu falar de “O corcunda de Notre-Dame” ou “Nossa Senhora de Paris” (“Notre-Dame de Paris”, 1831), “Os Miseráveis” (“Les Misérables”, 1862) e “Os trabalhadores do mar” (“Les Travailleurs de la mer”, 1866) há de concordar comigo.

Todavia, para além de escritor, Victor Hugo foi sobretudo um “sage” (leia-se “sábio”). Mais do que muita sabedoria encontramos na fábula de Esmeralda, Quasímodo e Clode Frollo, que se antagonizam na “Notre-Dame de Paris”. Em “Les Misérables”, aprendemos, até demasiadamente, com a saga de Jean Valjean, a rigidez religiosa de Javert, a miséria de Fantine, o exemplo-exceção de bondade do Bispo de Digne, a malevolência de Gravoche e a infelicidade de Cosette, só no final redimida nos braços de Marius. Com “Les Travailleurs de la mer” eu aprendi algo que nunca esqueci: não podemos vencer a natureza.

Mas, hoje, para confirmar a minha tese sobre a “sagesse” (leia-se “sabedoria”) de Victor Hugo, eu gostaria de chamar a atenção para um título específico de sua vasta obra, aquele provavelmente mais relacionado ao direito, que é “O último dia de um condenado” (“Le dernier jour d’un condamné”, 1829).

Com “Le dernier jour d’un condamné”, o escritor e também homme politique Victor Hugo aparenta-se a Dostoiévski (“Recordações da Casa dos Mortos”, 1862), John Howard (“O estado das prisões”, 1777), Oscar Wilde (“A balada da prisão de Reading”, 1898) ou com os nossos Graciliano Ramos (“Memórias do Cárcere”, 1953), Plínio Marcos (“Barrela”, 1958) e Assis Brasil (“Os que bebem como os cães”, 1975), que tão bem relataram a vida carcerária e a dos seus condenados, cada um com as suas especificações, evidentemente. Sob os pontos de vista filosófico, sociológico, psicológico e jurídico, o romance de Hugo cruamente nos apresenta o diário de um condenado à morte, anônimo, que não é herói nem vilão, nas últimas 24 horas anteriores a sua execução. Mas como se julga o ato do homem (ou do seu agrupamento em forma de Estado) que decide e impõe a morte a um outro homem? É o que procura fazer o autor. Trata-se do que os franceses chamam de “roman à thèse”. Serve de libelo contra a pena de morte, tema tão importante para o direito (e aqui já deixo minha assertiva oposição à pena capital imposta pelo Estado). É verdade que a pena de morte, depois de muita luta, está hoje abolida na grande maioria dos países ditos “civilizados”. Mas, com Hugo e seu livro, na França e por onde a sua literatura se irradia, a luta por essa abolição atingiu consciências e sensibilidades. Poucos fizeram tanto para abolir a “maldita” como o bom reformista/ativista Victor Hugo (e penhoradamente agradecemos!). Até porque, as maiores batalhas da humanidade foram ganhas não só com a razão/inteligência, mas, também, empregando-se a alma e o coração.

Aliás, na edição que possuo de “Le dernier jour d’un condamné” (Le Livre de Poche, 1989), na contracapa, consta: “V. Hugo escreveu admiráveis poemas, ele escreveu admiráveis romances e admiráveis dramas; mas, para nós, sua obra capital – quando a guilhotina tiver sido definitivamente abolida – será ter ajudado a abolir essa guilhotina. Há algo maior que um grande poeta ou um grande romancista. É um sábio. E há algo mais belo, mais invejável, que a imaginação. É o coração”.

Bom, Victor Hugo redirecionou sua arte para servir a uma das mais nobres causas da humanidade. Quem é mesmo sábio, e não apenas inteligente, tende a ter um bom coração. Podem ter certeza.

 

 

 

 

 

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

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