DESBOTADA CENA – José Delfino

DESBOTADA CENA –

Donana chegou ontem em casa com um recipiente de plástico transparente do tamanho de uma banana-maçã das pequenas. Olha que lindo e gostoso. Legumes tostados ao molho de gergelim, meu amor. Comida vegana. Achei o colorido da gororoba bonito. Logo me vieram à mente as insípidas e inodoras experiências gastronômicas de épocas pretéritas. Do tempo dos cabelos grandes ao vento, das bruacas de couro cru coladas aos ombros, das sandálias franciscanas forrando os descaminhos.

Esquentava, no outro lado mundo, a guerra fria. Por essas bandas, a ditadura comia no centro. O que restava de bom recendia a imitações do “make love not war”. Pairava no ar a fumaça das folhas e das inflorescências secas do cânhamo em cabeças flutuantes e sorridentes, ao som do Joe Cooker, Hendrix, e Jane Joplin na vitrola. Afinal, Woodstock era (e será sempre) bem longe daqui.Tempos em que Véscio Lisboa não havia ainda se debandado para a crença islâmica, nem ainda trocado de nome, mas já assumia a posição de Buda e admirava, em silêncio e paz, o pleno sol do meio dia da cidade alta.

Sua companheira inseparável, diziam, era uma imensa cobra jibóia. Réptil, boídeo imenso, de coloração cinzenta, tirante a violáceo, com faixas de cor escura no dorso, que jazia indolente e sedentária no chão da casa. Assuntavam, também, as más línguas que ela se alimentava de aves e roedores. Nunca houve empenho ou coragem de ninguém em confirmar tal suspeita, nem em se saber onde ele encontrava as iguarias ofídicas para alimentá-la. Afinal, não seria de bom tom falar em bichos de carne vermelha , num restaurante macrobiótico , cujo inarredável cardápio era um “main course” à base de arroz integral, bife de soja, carne de ave e peixes em doses homeopáticas. E bolinhos azuis temperados com g-sal , único e solitário condimento disponível. O google ainda estava a séculos de existir.

O sopro do boca-a-boca dizia que aquilo não chegava a ser uma dieta , mas um estilo de vida . E a galera engolindo a corda da novidade reinante. O barato era se alimentar seguindo o fluxo energético do yin e do yang, nas horas vagas ou mortas; sempre que a turma enchia o saco de se fartar dos caldos “a cavalo” da tenda do Cigano, regados a cerveja; ou se empanturrar de caranguejos, com apreciáveis quantidades de batidas de tamarindo, à beira do rio Potengi, a maré salobra quase batendo nos pés, no “Briza del Mare”.

Vício, prazer ou excesso ? Difícil inferir. Afinal, eles eram, e continuam a ser, simples exercícios com ou quase sem regulamentação. Em graus diferentes. Vício, ao arrebentar a boca do balão. Prazer, mais atenuado, às vezes mandando às favas a fronteira do comedimento. E o excesso um paradigma, como justificativa dos não praticantes de nenhum dos dois. Se não fosse assim não haveria nenhum dos três. Nem definição causal, que implicasse importância. Não existia então a ideia , como hoje em dia , da tentativa de se almejar , a qualquer custo a magreza e a longevidade. Hábitos ditos saudáveis não estavam em moda . A nossa pouca idade não vislumbrava tanto.

Pensamento de volta ao interior do apartamento, agradeci a Donana, da forma mais polida possível, dadas as circunstâncias. E dei a ela o troco, propagado ao enxundioso e obeso ar da cozinha. Capitulina, (que nome estranho) prepara aí o arroz de macarrão com muita pimenta de cheiro e folha de louro, e aquela carnezinha de sol com farofa de bolão. O Cuba-Libre já pronto. Glutonia excluída, após os 70 anos de idade, me pareceria razoável, investir mais e mais nos olhares, cheiros, sabores e gostos, enquanto os nossos órgãos sinestésicos ainda funcionam.

Ouvir música, ler livros, espiar (sem dar na vista) pares de coxas e músculos, belos perfis, como se fossem pela última vez. Eles ai estão para a saciedade, e para o deleite a serviço do cambaio erotismo da terceira idade. Um tanto lógico, portanto, adentrar com altivez, certa loucura ou insensatez em outros mundos. Como os dos alimentos industrializados dos supermercados, politicamente não corretos; os não naturais, os que encerram em si agrotóxicos, conservantes, sódi, gorduras trans hidrogenadas; farináceos brancos, enlatados, congelados, chocolate e açúcares. Hidratar é preciso: álcool, água mineral, café e chá; o diabo a quatro.

Lembrem-se de Gil: “O sonho acabou / quem não dormiu num sleeping bag / nem sequer sonhou”. O tempo urge. A hora da desforra de muitos chegou. Eis a cruel constatação. Começo a acreditar no bardo da rua São João, que diz e logo indaga: “Faça dieta , não fume , não beba, faça exercício / mas cá pra nós viver muito / não dói muito mais que um vício? É que naqueles velhos tempos, éramos novos. E não sabíamos disso.

 

José DelfinoMedico, poeta e músico
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