CARL SCHMITT, CASABLANCA E MUITAS DIVAGAÇÕES – Marcelo Alves Dias de Souza

CARL SCHMITT, CASABLANCA E MUITAS DIVAGAÇÕES –
A noite, sobretudo quando tarde e já fatigado, me é propensa a divagações. Imagine-se quando se está preparando uma aula, se esbarra em tema, como o da legitimidade democrática da jurisdição constitucional e, principalmente, na famosa polêmica acerca dele entre Hans Kelsen (1881-1973) e Carl Schmitt (1888-1985).
A Hans Kelsen, para quem não sabe, é atribuída a paternidade intelectual do modelo de jurisdição constitucional continental-europeu, inaugurado na sua pátria, a Áustria, no ano de 1920. Nesse modelo, na sua feição clássica, tem-se, em cada país, um único tribunal, muitas vezes chamado de Tribunal Constitucional, competente para apreciar, de modo concentrado, direto e em abstrato (às vezes, em concreto), a constitucionalidade das leis (entendida aqui em sentido lato, para abarcar outros atos normativos). Já Carl Schmitt, jurista e filósofo político alemão, foi um crítico severo da conveniência da criação de tribunais constitucionais para realizar a defesa da Constituição, já que isso não jurisdicizaria a fiscalização da constitucionalidade das leis, mas sim politizaria a justiça. Para ele, em frase que se tornou célebre, justiça constitucional seria uma contradição em si mesma.
Mas era uma noite propensa a divagações, e sucumbi ao hábito de, cansado dos estudos, ver televisão ou ler algo mais leve, como forma de relaxar um pouco a mente. Zapeando os muitos canais da TV por assinatura, deparei-me com o filme Casablanca. Ao ver a personagem de Ingrid Bergman, de imediato, ali mesmo, parei.
Divagações. E assisti ao filme até o fim.
Se Casablanca é considerado como um dos melhores filmes de todos os tempos – um clássico do ano de 1942 (direção de Micheal Curtiz e vencedor de três Oscars), um drama romântico que busca, em tempo de guerra, traçar a saga dos que tentavam fugir da Europa e África, ocupadas pelos nazistas, para regiões livres do mundo –, nada no filme me chama mais atenção do que o fato de a personagem de Humphrey Bogart (Rick) abrir mão do amor Ingrid Bergman (Ilsa), sob um aparente sentimento patriótico, que ele parecia não possuir. Só podiam ser tempos de guerra.
Bom, de toda sorte, eles tinham Paris. Pelo menos foi o que disse Rick ao se despedir de Ilsa: “Sempre teremos Paris”. Divagações e mais divagações.
Mas voltando a Carl Schmitt (e deixando de lado sua polêmica com Kelsen), sem tirar Casablanca e Ingrid Bergman da cabeça, lembrei-me de que sua vida ficou para sempre marcada por sua ligação com o regime nazista, tornando-se, a exemplo do que se deu com Martin Heidegger (1879-1976) na filosofia, um pensador estigmatizado. Afora seu engajamento na causa nazista (ao que consta, filiou-se ao Partido em 1933, tendo assim permanecido até o fim da Guerra, sem qualquer retratação posterior), pelo menos duas de suas obras mais conhecidas, “A Ditadura” (Die Diktatur) e “O Conceito do Político” (Der Begriff des Politischen), tiveram enorme influência para fins de legitimação progressiva do regime instituído por Hitler.
Essa aproximação de Carl Schmitt com o regime nacional-socialista, certamente, embaça, às vezes por puro preconceito, nossa percepção de sua obra, que, registre-se, não se restringe à filosofia, à ciência política ou ao direito, muito embora essa outra produção, que podemos chamar de literária diletante, seja de difícil acesso para o leitor brasileiro, dado a ausência de tradução para o português, salvo se o leitor for também fluente no alemão.
É evidente que nada justifica os crimes praticados pelo regime nazista e tratar disso aqui seria discorrer sobre o óbvio. Mas é tema dos mais controversos até que ponto vai o envolvimento de Carl Schmitt – ou, melhor dizendo, qual a influência do seu pensamento – com as condutas dos que, de fato, empreenderam tais crimes.
Ele, no contexto alemão das décadas de 30 e 40, com certeza, não foi um homem puro. Mas, como lembra Fernando Pessoa, no seu “Poema em Linha Reta”: “Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo? Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?”.
Carl Schmitt acabou pagando por suas opções. Preso no pós-guerra, para o resto da vida foi um estigmatizado. Tentemos, passados tantos anos, olhar sua obra com mais objetividade. Sem preconceitos, mesmo que com suas ideias, ao final, não concordemos.
Aprendidas minimamente as lições, a guerra acabou, estamos em paz e sempre teremos Paris.
Divagações, gostosas divagações!

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP

As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores
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