A VELHA MÁQUINA DO TEMPO – Alberto da Hora

A VELHA MÁQUINA DO TEMPO –

Os leitores mais inquietos me perdoem, mas eu insisto em escrever sobre um passado onde pequenos hábitos e costumes preenchiam nossas vidas adolescentes. E acredito que alguns relatos pessoais podem ajudar a guiá-los em direção ao tempo das suas próprias experiências e assim formarmos uma corrente de nostálgicas lembranças da época em que ricos, pobres, feios, belos, brancos, negros, pardos, louros, éramos ingênuos, puros e talvez felizes.

Anos cinquenta. Na casa dos meus tios, num dia qualquer, passa das sete horas da noite e um grupo se aglomera ao redor da rede tosca. Meu tio, com ar solene, entrega-me um pequeno pacote amarrado por uma fita. E eu recebo com ansiedade infantil o maço de folhetos, minha tarefa para aquela noite em que todos esperam pelas aventuras e desventuras dos personagens que habitam o universo do cordel. Heróis e vilões que desfilam no quadrado das estrofes estão prestes a excitar os ouvidos acostumados na atenção à minha fraca voz de oito anos. Sim, nessa idade eu já tinha na leitura fluência bastante para merecer de Hulda, uma parenta mais velha, o apelido de “dotô”.

E assim, como um doutor do Primário, eu lia dois ou três “romances” à luz do candeeiro, até quando, vencido pelo sono, recolhia-me à mesma rede, depois de ir ao terreiro para mijar. Um ritual simples, depois de levantar o “chambre”, a rude túnica de pano barato com que nós, garotos pobres, éramos vestidos para dormir. Depois, obedecer ao costume de tomar a bênção a quase todos os mais velhos presentes; tios, tias, padrinho, madrinha, seu fulano, dona fulana e a quem mais ali estivesse e merecesse respeito e honra em Extremoz.

A Igreja de São Miguel eu frequentava quando criança. É uma igreja histórica, que guarda um passado de verdades e lendas. Já não tinha a arquitetura nem a localização original, mudada que fora ao longo dos anos. Na sacristia, havia (ainda há) algumas imagens, e pelo menos duas quase em tamanho natural. Uma era o Senhor Morto, depositado em um nicho horizontal; a outra, um Cristo curvado sob o peso da cruz, ostentando a coroa de espinhos, a face sangrenta, um manto roxo realçando a humana e dolorosa expressão. Parecia vivo. Ficavam no caminho para o banheiro, mas, sozinho, ali eu não ia, morria de medo.

Guardo uma incômoda impressão daquelas imagens. Não deveriam suscitar temor cenas que inspiram somente compaixão e respeito. O Cristo representado assim não faz jus ao transcendente significado do seu sacrifício. É fruto de uma orientação doutrinária que insiste em atribuir a alguns símbolos materiais uma importância maior do que o valor espiritual da fé cristã.

As missas, eu assistia na capela da Guarita. De férias em Extremoz, eram mais as aulas de Catecismo. A companhia era Humberto, meu irmão e os primos. Uma boa lembrança era da negra Benigna, uma amiga divertida, mais velha, que nos liderava nas aventuras de pegar lagartixa, na saída da igreja. Depois, Conceição, minha prima e madrinha.

A lagoa de Extremoz, famosa por tantas lendas, mesmo sem o caráter das suas histórias, era um lugar mágico para nós. Foi o principal destino para o divertimento e as brincadeiras nas suas margens de águas tépidas e rasas. Uma divisão com estacas e arame isolava o lugar de trabalho das lavadeiras do espaço reservado aos banhistas.  Às vezes, alguém sugeria um passeio de canoa. Eu, como eterno medroso, não ficava muito à vontade, por medo de cair em local mais profundo e até por lembrar da cobra imensa que as lendas diziam habitar o fundo da lagoa.

 

 

 

 

 

 

Alberto da Hora – escritor, cordelista, músico, cantor e regente de corais

As opiniões contidas nos artigos/crônicas são de responsabilidade dos colaboradores
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