A ESPARRELA –

Nasci e me criei ouvindo esse termo, “esparrela”, referindo-se a alguma coisa que não tinha dado certo para alguém. Quando alguém “quebrava a cara”, com uma decepção amorosa, ou era enganado, se dizia que aquela pessoa havia caído na esparrela. Acreditou nas palavras e promessas de um mentiroso enrrolão.

Outra expressão também muito usada, quando alguém levava um calote em dinheiro, era “caiu no conto do vigário”.

Há duas versões da origem dessa expressão.

De acordo com a Wikipêndia, o termo “conto do vigário” teve origem no século XVIII, em Ouro Preto (MG), onde um vigário propôs uma história envolvendo uma imagem de Nossa Senhora entre duas paróquias: a de Pilar e a da Conceição, que queriam a mesma imagem de Nossa Senhora.

Um dos vigários propôs que amarrassem a santa num burro ali presente e o colocassem entre as duas igrejas. A igreja que o burro tomasse direção ficaria com a santa. Acontece que o burro era do vigário da igreja de Pilar e por isso se direcionou para lá, deixando o vigário vigarista com a imagem.

A outra versão do “Conto do Vigário” refere-se a um pequeno lavrador e negociante de gado, português, de nome Manuel Peres Vigário, que comprou e repassou notas falsas e terminou prestando contas à Justiça.

Manuel Peres Vigário teria existido em Portugal, sendo personagem do poeta Fernando Pessoa, em “Conto do Vigário”, escrito em 1929.

A ORIGEM DO “CONTO DO VIGÁRIO – Por Fernando Pessoa

“Vivia há já não poucos anos, algures, num concelho do Ribatejo, um pequeno lavrador, e negociante de gado, chamado Manuel Peres Vigário.

Da sua qualidade, como diriam os psicólogos práticos, falará o bastante a circunstância que dá princípio a esta narrativa. Chegou uma vez ao pé dele certo fabricante ilegal de notas falsas, e disse-lhe: «Sr. Vigário, tenho aqui umas notazinhas de cem mil réis que me falta passar. O senhor quer? Largo-lhas por vinte mil réis cada uma.» «Deixa ver», disse o Vigário; e depois, reparando logo que eram imperfeitíssimas, rejeitou-as: «Para que quero eu isso?», disse; «isso nem a cegos se passa.» O outro, porém, insistiu; Vigário cedeu um pouco regateando; por fim fez-se negócio de vinte notas, a dez mil réis cada uma.

Sucedeu que dali a dias tinha o Vigário que pagar a uns irmãos negociantes de gado como ele a diferença de uma conta, no valor certo de um conto de réis. No primeiro dia da feira, em a qual se deveria efectuar o pagamento, estavam os dois irmãos jantando numa taberna escura da localidade, quando surgiu pela porta, cambaleando de bêbado, o Manuel Peres Vigário. Sentou-se à mesa deles, e pediu vinho. Daí a um tempo, depois de vária conversa, pouco inteligível da sua parte, lembrou que tinha que pagar-lhes. E, puxando da carteira, perguntou se, se importavam de receber tudo em notas de cinquenta mil réis. Eles disseram que não, e, como a carteira nesse momento se entreabrisse, o mais vigilante dos dois chamou, com um olhar rápido, a atenção do irmão para as notas, que se via que eram de cem. Houve então a troca de outro olhar.

O Manuel Peres, com lentidão, contou tremulamente vinte notas, que entregou. Um dos irmãos guardou-as logo, tendo-as visto contar, nem se perdeu em olhar mais para elas. O vigário continuou a conversa, e, várias vezes, pediu e bebeu mais vinho. Depois, por natural efeito da bebedeira progressiva, disse que queria ter um recibo. Não era uso, mas nenhum dos irmãos fez questão. Ditava ele o recibo, disse, pois queria as coisas todas certas. E ditou o recibo – um recibo de bêbedo, redundante e absurdo: de como em tal dia, a tais horas, na taberna de fulano, e «estando nós a jantar (e por ali fora com toda a prolixidade frouxa do bêbedo…), tinham eles recebido de Manuel Peres Vigário, do lugar de qualquer coisa, em pagamento de não sei quê, a quantia de um conto de réis em notas de cinquenta mil réis. O recibo foi datado, foi selado, foi assinado. O Vigário meteu-o na carteira, demorou-se mais um pouco, bebeu ainda mais vinho, e daí a um tempo foi-se embora.

Quando, no próprio dia ou no outro, houve ocasião de se trocar a primeira nota, o que ia a recebê-la devolveu-a logo, por escarradamente falsa, e o mesmo fez à segunda e à terceira… E os irmãos, olhando então verdadeiramente para as notas, viram que nem a cegos se poderiam passar.

Queixaram-se à polícia, e foi chamado o Manuel Peres, que, ouvindo atónito o caso, ergueu as mãos ao céu em graças da bebedeira providencial que o havia colhido no dia do pagamento. Sem isso, disse, talvez, embora inocente, estivesse perdido.

Se não fosse ela, explicou, nem pediria recibo, nem com certeza o pediria como aquele que tinha, e apresentou, assinado pelos dois irmãos, e que provava bem que tinha feito o pagamento em notas de cinquenta mil réis. «E se eu tivesse pago em notas de cem», rematou o Vigário «nem eu estava tão bêbedo que pagasse vinte, como estes senhores dizem que têm, nem muito menos eles, que são homens honrados, mas receberiam.» E, como era de justiça foi mandado em paz.

O caso, porém, não pôde ficar secreto; pouco a pouco se espalhou. E a história do «conto de réis do Manuel Vigário» passou, abreviada, para a imortalidade quotidiana, esquecida já da sua origem.

Os imperfeitíssimos imitadores, pessoais como políticos, do mestre ribatejano nunca chegaram, que eu saiba, a qualquer simulacro digno do estratagema exemplar. Por isso é com ternura que relembro o feito deste grande português, e me figuro, em devaneio, que, se há um céu para os hábeis, como constou que o havia para os bons, ali lhe não deve ter faltado o acolhimento dos próprios grandes mestres da Realidade – nem um leve brilho de olhos de Macchiavelli ou Guicciardini, nem um sorriso momentâneo de George Savile, Marquês de Halifax.”

(Segundo informação que se pensa fidedigna, o texto foi escrito por Fernando Pessoa e publicado pela primeira vez no diário Sol, Lisboa, ano I, nº 1, de 30/10/1926, com o título de «Um Grande Português». Foi publicado depois no Notícias Ilustrado, 2ª série, Lisboa, 18/08/1929, com o título de «A Origem do Conto do Vigário».)

Fernando Pessoa (1888-1935) foi um dos mais importantes poetas da língua portuguesa e figura central do Modernismo português. Poeta lírico e nacionalista, cultivou uma poesia voltada aos temas tradicionais de Portugal e ao seu lirismo saudosista, que expressa reflexões sobre seu “eu profundo”, suas inquietações, sua solidão e seu tédio.

Foi vários poetas ao mesmo tempo, criou heterônimos – poetas com personalidades próprias que escreveram sua poesia e, com eles procurou detectar, sob vários ângulos os dramas do homem do seu tempo.

Há traduções de Fernando Pessoa e seus heterônimos em espanhol, francês, Inglês, alemão, Italiano, chinês etc.

Fernando Pessoa, que vivia em quartos alugados, conflituoso, sujeito a crises de depressão e alcoolismo, faleceu em Lisboa, Portugal, no dia 30 de novembro de 1935, vítima de cirrose hepática.

A biblioteca Nacional de Portugal, localizada em Lisboa, possui 99% do acervo pessoal de Fernando Pessoa, enquanto a Casa Fernando Pessoa guarda e preserva o espólio documental e a biblioteca que pertenceu ao escritor.

Fernando Pessoa, que vivia em quartos alugados, conflituoso, sujeito a crises de depressão e alcoolismo, faleceu em Lisboa, Portugal, em 30 de novembro de 1935, vítima de cirrose hepática.

 

 

 

 

 

 

Violante Pimentel – Escritora

As opiniões contidas nos artigos/crônicas são de responsabilidade dos colaboradores
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