TÍTULOS ACADÊMICOS – Heraldo Palmeira

TÍTULOS ACADÊMICOS –

Encontrei Afonso afobado. Obra do acaso em plena avenida Paulista. Afinal, quem vive em Sampa um dia passa por ali. Talvez, por isso mesmo, eu tenha escolhido aquele hotel da Paulista para todas as vezes que estava na cidade.

Fazia tempo que não nos víamos, nós que havíamos sido muito próximos nos tempos em que vivi na cidade pela primeira vez, idos dos 80.

Tivemos tempo para um café no Starbucks ali perto e marcamos jantar para a noite seguinte. Como não poderia deixar de ser, direto no Gigetto velho de guerra, ainda na Avanhandava, com aqueles pães maravilhosos de entrada em seu ambiente enorme e retrô, e repleto de boas histórias da Pauliceia Desvairada.

A certa altura da conversa, pães servidos, azeite e sal à mão, ele reclamou da nova namorada. Bem mais nova que ele, ainda beirando os 30, orgulhosa do mestrado e iniciando os movimentos para o doutorado. Ele não se conformava que ela, que gostava tanto de água com gás, nunca tivesse ouvido falar em Perrier. “Como é que essa mulher não conhece a francesinha verde?” – perguntou-me indignado. “Tem mestrado na USP e vai fazer doutorado por lá!” – emendou irritado.

Tentei ponderar utilizando a lógica dali mesmo da rua Avanhandava. Quem, nessa faixa de idade mais nova, tem idéia do que significou o Gigetto na história do teatro e da melhor boemia paulistana?

Procurei relativizar a chateação do meu amigo me apoiando na mudança definitiva nos costumes, na forma atual de as pessoas se relacionarem com suas preferências. Para nossa geração, os endereços e as marcas dos velhos tempos, que ainda sobrevivem, são como santuários para onde sempre rumamos sem pestanejar. Talvez em busca de reviver certas felicidades adormecidas ou quase perdidas. As novas gerações têm outros interesses. Preferem se guiar apenas pelo que está bombando naquele exato momento. Sem esses nossos vínculos duradouros que provocam até dores de saudade.

“Como pode uma socióloga que se enche de títulos acadêmicos não compreender o cardápio, a decoração dos restaurantes e a própria rua Avanhandava como manifestação cultural fundamental de uma São Paulo cosmopolita?” – Afonso estava irredutível listando os pecadilhos da moça. “Esses meninos de hoje em dia não sabem nada de nada”.

Tentei contemporizar, lembrar a ele que nossa geração era movida por outros sentimentos, outras formas de encantamento. O sistema de comunicação era lento e romântico, muito diferente desse inferno midiático de hoje. Os ídolos do nosso tempo eram muito mais duradouros do que essas celebridades instantâneas e rarefeitas de agora, que nunca sabemos direito quem são.

Quando, agora, teríamos uma Marilyn Monroe povoando os sonhos e os desejos mais secretos de todos os homens do planeta durante anos a fio? Não vivíamos esse frisson de milhares de novidades por minuto que temos hoje. E nos dávamos o luxo de criar mitos deslumbrantes e duradouros. Mas ela também derrapava, tinha seus engasgos culturais. Ninguém se importava com isso.

A mesma deusa que foi sondada pelo armador grego Aristóteles Onassis para casar com o príncipe de Mônaco. O mesmo Onassis que queria manter sua hegemonia nos negócios a partir daquele paraíso e tratou de resolver o problema do solteirão Rainier.

Como não fazia a menor idéia de onde ficava o principado e queria saber se “o tal de Mônaco” tinha dinheiro, perdeu a vaga para uma atriz então relativamente conhecida chamada Grace Kelly. Americana, católica. E um pouco mais culta.

Afonso manteve silêncio absoluto me ouvindo desencavar essas passagens antigas. Parou de se queixar da namoradinha, quase doutora da USP, entretido com historietas que só interessavam a dois homens de meia-idade em crise de saudosismo como nós.

Marilyn, sabemos hoje, andou pela sarjeta desde cedo, enfrentou vícios, ansiedade, depressão e morreu entupida de remédios no meio de uma luta sem saída entre Norma Jean, a dilacerada, e Marilyn, a deusa decadente do cinema.

Marilyn, com o mundo aos seus pés, não sabia sequer o que era Mônaco, quanto mais onde ficava. E a gente condescendia. Por que nossa quase doutora da USP não pode ignorar a Perrier? Quem sabe, não conhece a Evian? Sem gás, mais encorpada, garrafa transparente… E daí?

Disse a Afonso que nossa guerra contra a ignorância desses acadêmicos de papel está perdida. Na verdade, temos algo muito mais importante para nos aborrecer doravante, no momento em que nossa geração já está avistando os primeiros sinais da velhice.

Por ora, vemos apenas seus contornos e fazemos o possível para que permaneçam distantes. Mas começamos a adoecer definitivamente – artroses, visão comprometida, insônia, pequenas dificuldades para fazer coisas até então tidas como simples…

É como se mudássemos de emprego para conviver com novos colegas de cotidiano, que atendem por nomes inconvenientes como consultórios, exames, fisioterapia, dieta, controle de taxas, remédios, exercícios físicos chatíssimos…

Afonso e eu nos despedimos fervorosamente, sem saber se nos veríamos de novo. Tínhamos pela frente algo muito maior do que uma simples água engarrafada, esse prazer mundano que sai na urina.

Queria muito saber o que meu amigo pensa a respeito de, depois de tanto tempo, o Gigetto ter escorregado do seu reino para uma ladeira do Bixiga. Eu me limitei a uma última visita de despedida. O velho lugar de antes está perdido. Sobrevive nos fantasmas da memória.

 

Heraldo PalmeiraProdutor Cultural

As opiniões emitidas são de responsabilidade dos colaboradores
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